AVALIE, COMENTE, CRITIQUE; QUERO SABER SUA OPINIÃO

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Prece de passagem

Pai, diante de Ti, somos como crianças diante de um Pai bondoso.
Não compreendemos tudo que fazes
(às vezes não compreendemos quase nada),
mas tudo que somos e temos vem de Ti.
Que a fé possa sempre morar no nosso peito,
como uma chama que resiste a qualquer vendaval.

Desculpe, Pai, pela cegueira, pelas vezes que te negamos, com palavras ou gestos.
Perdoe as nossas birras, o nosso cansaço, nossa mania de reclamar.
Nós, filhos pequeninos, quase não percebemos tudo que já recebemos.
Nem o que nos é dado a cada ano, a cada dia, a cada minuto, absolutamente de graça.
Obrigado, Pai, pela vida, pela saúde, pela companheira, pelos filhos, e pelos amigos.
Por tanta coisa boa que aconteceu nesse ano de 2009.
Sabemos que contigo também podemos contar nas dores,
para encontrar consolo e força para seguir em frente.

Que seja feita a tua vontade,
pois nenhum mal vem de ti.
Mas, por favor, se for possível,
abençoe as nossas famílias com muita paz e saúde em 2010.
E nos ilumine para que a cada momento possamos encontrar
os caminhos que levam ao nosso eu mais profundo e ao próximo.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Cem anos de solidão - edição especial

Há livros que já sabemos que vamos ler e gostar, mas esperamos, às vezes anos, pelo momento propício, como quem espera a chegada de um amor. Assim foi com Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, que li apenas há alguns meses, quando encontrei na livraria a edição comemorativa dos seus 40 anos. Quem estuda ou estudou espanhol, já leu ou ainda não leu Cem Anos de Solidão, não deve perder a oportunidade desse encontro: Cien Años de Soledad, edición conmemorativa, Real Academia Española y Asociación de Academias de la Lengua Española, livro verde com capa dura vendido no Brasil por cerca de trinta reais. Além do texto revisado pelo autor, da árvore genealógica da família Buendía e de um glossário, essa edição conta com excelentes ensaios sobre o livro, como Cien Años de Soledad, Realidad Total, Novela Total, de Mario Vargas Llosa, e Gabriel García Marquez, en Busca de la Verdad Poética, de Víctor García de la Concha.

sábado, 12 de dezembro de 2009

NATALINO

“Se negamos nossa própria dor, torna-se fácil descartar a dor alheia”.
(Karen Armstrong)

O Natal é universal. Toda religião é universal. Cada religião tem seus ritos, seus símbolos, suas histórias. Mas os religiosos sabem, ou deveriam saber, que tudo isso são apenas formas de vislumbrar, de remeter a algo que não pode ser definido, que não pode ser totalmente revelado, que não pode ser, em essência, nomeado. Deus nos livre de quem confunde o transcendente com os símbolos particulares de sua religião e defende cruzadas contra as palavras, os ritos, e os mitos das religiões dos outros.

O Natal é comemorado no dia 25 de dezembro, pois no hemisfério norte é nesse dia que o sol, que a cada dia durante o inverno desaparece mais cedo, condenando o mundo às trevas, reverte essa trajetória e volta a iluminar a terra. Comemora-se o nascimento de Jesus como o surgimento de uma luz que vem socorrer um mundo prestes a desaparecer nas trevas. E essa luz é Deus, e Deus é essa luz. Quem não reconhece esse mesmo padrão, revivido de dez mil formas, na arte ou dentro de si mesmo? Quem não tem intimidade com um mundo que progressivamente perde a luz, se descolore e parece fadado a sucumbir à falta de sentido? Um mundo que, no entanto, volta milagrosamente a ser iluminado, volta a fazer sentido sem que se saiba exatamente como nem por que.

Mas cada luz que nasce é sempre breve. Novamente irá sofrer, enfraquecer e morrer. Jesus morre crucificado. Quando as mulheres vão procurar pelo seu corpo, lhe falam: “Por que procurais entre os mortos aquele que está vivo?” Dois discípulos tristes com a morte de Jesus encontram um desconhecido que lhes fala sobre a mensagem das escrituras, sem que isso possa lhes animar. Apenas quando esse desconhecido reparte o pão, os discípulos vêem Jesus aparecer diante deles, para logo desaparecer. Pois Deus não nasceu quando Jesus nasceu nem morreu quando ele morreu. Deus (ou o Bem, ou o Amor, ou o Tao, ou o Nirvana, ou Buda, ou Alá, ou Brahman) está em cada um de nós e em cada fenômeno do mundo, embora muitas vezes só possa ser visto como ausência. E aparece quando dois ou três homens se reúnem e dividem o pão, não importa em que época, em que lugar ou as palavras que eles falem.

Será que também hoje não vivemos dias tão sofridos, em que as trevas avançam, e as disputas religiosas nos põem diante da escolha entre viver sem religião ou viver com uma religiosidade em que os símbolos são distorcidos a tal ponto em que mais escondem do que revelam Deus? Será que devemos procurar entre os mortos o que está vivo? Ou será que é tempo de nascer também uma nova forma de religiosidade, que na realidade é a velha e original forma adaptada aos tempos de hoje?

Nessa época natalina, vejo a estrela de Belém indicando o livro “A escada espiral”, de Karen Armstrong. A autora apresenta, por meio de suas memórias e de seus dilemas pessoais, os dilemas da modernidade diante da religião, e aponta um caminho. Além do livro indicado, Karen Armstrong já escreveu livros de divulgação das principais religiões do mundo, para que muçulmanos, cristãos, judeus, e budistas, condenados ou abençoados pela história a dividirem o mesmo mundo, possam não se matar uns aos outros, mas se entender e dividir o pão:

“O que nosso mundo precisa agora não é crença nem certeza, mas compaixão ativa e respeito, expresso na prática, pelo valor sagrado de todos os seres humanos, inclusive de nossos inimigos.”
(texto escrito em dezembro de 2007)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Festa para a chegada da Ilíada e da Odisseia à Língua Portuguesa

Tal como quando na chegada de um amigo querido que esteve longo tempo em viagem prepara-se uma festa com muito vinho e boa música; assim os amantes de literatura que lêem em português deveriam dar uma grande festa para celebrar as traduções da Ilíada e da Odisseia feitas por Frederico Lourenço para as Edições Cotovia. Pois depois de mais de dois mil e quinhentos anos de aventura, os versos de Homero que sustentam a literatura chegam finalmente com vigor e fluência às praias da língua portuguesa.

Antes de embarcar na Odisseia, estou lendo a Ilíada. A Ilíada se concentra em um pequeno período durante a guerra de Tróia, que vai do desentendimento de Aquiles com o chefe das forças gregas, Agamémnom, passando pela luta entre Heitor e Aquiles, em que este mata Heitor em vingança da morte de seu amigo Pátroclo, e terminando com os funerais de Heitor, depois do acolhimento de Aquiles ao pai de Heitor, Príamo, que viera desarmado a sua tenda pedir o corpo do filho ao inimigo. Espalhados pelos seus 16 mil versos, o poeta lança mão de comparações, que servem não só para reforçar os fatos narrados, mas também para ampliar o universo do poema, com observações precisas sobre a natureza e as atividades do homem. Veja dois exemplos de comparações, ou símiles, retirados da Ilíada:

Porém no meio da planície alguns ainda fugiam como vacas
que um leão pôs em fuga no negrume da noite; a todas pôs
em fuga, mas é a uma que aparece a morte escarpada:
primeiro com sua dentição possante lhe agarra o pescoço,
e depois devora-lhe o sangue e todas as vísceras.
Era assim que o Atrida, o poderoso Agamémnom,
os perseguia, sempre a matar os da retaguarda em fuga.
(Canto XI, versos 172-178)

Ora de forma alguma Ájax, célere filho de Oileu,
se afastava de Ájax Telamónio, nem por pouco tempo.
Mas tal como em terra de pousio dois bois cor de vinho
com ânimo idêntico puxam o arado articulado e da base
dos cornos brota o suor em grande abundância;
e a ambos só o jugo bem polido mantém afastados,
esforçando-se na terra até o arado cortar o termo do campo –
assim se posicionaram os dois Ajantes, um ao lado do outro.
(Canto XIII, versos 701-708)

A composição de Homero não pode ser elaborada sem ajuda da escrita. Embora grande como um romance, toda a narrativa compõe uma estrutura elaborada e coesa. Os grandes acontecimentos do épico estão amarrados com versos antecipatórios espalhados por todo o poema. O caminho de Pátroclo até a morte é exposto em seus pequenos detalhes, com versos inseridos com precisão ao longo das batalhas entre os gregos e os troiano. Nessa estrutura, também impressiona o contraste entre o conhecimento do narrador a respeito dos desígnios de Zeus e a situação trágica dos personagens que tomam decisões no escuro a cada momento, sem nunca saberem com certeza as intenções do poderoso Zeus. O narrador tem intimidade com Zeus pelo simples motivo de posicionar-se no futuro e narrar fatos passados e conhecidos, sendo coerente durante toda a narrativa. Os personagens especulam, tateiam como cegos as intenções do destino, mas não fogem à tarefa do homem de decidir sua ação, ou mesmo inação, de acordo com sua consciência a cada momento. Diferentemente do narrador, que sabe, os personagens freqüentemente discordam sobre a interpretação do destino e sobre os valores que devem prevalecer:

“Nenhum homem além do destino me precipitará no Hades,
Porém digo-te não existir homem algum que à morte tenha fugido,
Nem o cobarde, nem o valente, uma vez que tenha nascido.”
(Fala de Heitor no Canto VI, versos 487-489)

“Tídida, vira em fuga os teus cavalos de casco não fendido.
Não percebes que a vitória de Zeus não segue no teu encalço?
Hoje é àquele homem que Zeus Crônida outorga a glória;
No futuro outorgá-la-á de novo a nós, se ele assim entender.
Nenhum homem poderia frustrar o pensamento de Zeus,
Por muito forte que fosse, pois ele é ainda mais poderoso.”
(Fala de Nestor no Canto VIII, versos 139-144)

“...Não penso que o Atrida Agamémnom me persuadirá,
nem os outros Dânaos, visto que não há consideração
para quem luta permanentemente contra homens inimigos.
Igual porção cabe a quem fica para trás e a quem guerreia;
na mesma honra são tidos o cobarde e o valente:
a morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança....”
(Fala de Aquiles, recusando-se a guerrear, no Canto IX, versos 315-320)

“Meu amigo, se tendo fugido desta guerra pudéssemos
viver para sempre isentos de velhice e imortais,
nem eu próprio combateria entre os dianteiros
nem te mandaria a ti para a refrega glorificadora de homens.
Mas agora, dado que presidem os incontáveis destinos
da morte de que nenhum homem pode fugir ou escapar,
avancemos, quer outorguemos glória a outro, ou ele a nós.”
(Fala de Sarpédon a Glauco, incitando à luta, no Canto XII, versos 322-328)

domingo, 15 de novembro de 2009

Monotonamente Bela

Maragogi 2009


“A vida correria assim monotonamente bela, e não valeria a pena escrevê-la, a não ser um incidente, ocorrido naquela mesma ocasião."
(Machado de Assis, em O Machete)

Também eu aqui estou em dias de vida monotonamente bela, de férias no Resort Miramar, em Maragogi. O céu tão azul, o mar tão verde, coqueiros em todas as direções, e o álcool intensificando os tons.

O incidente que me fez escrever é o livro 50 Contos de Machado de Assis, Companhia das Letras, seleção, introdução e notas de John Gledson. Na seleção estão os grandes contos da maturidade do Machado, para reler, e algumas surpresas, como o primeiro conto da seleção, O Machete, imperdível.

O prefácio do organizador (Uma Breve Introdução aos Contos de Mahado de Assis) está perfeito. Portanto, fica a indicação e eu volto a minha praia monotonamente bela.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Gregos os venham que!

Em português: Que venham os gregos!

Tradução, do latim traductione, significa conduzir, levar, transferir. O tradutor, portanto, é quem transfere as obras escritas em uma língua para os leitores de outra língua. Nós, leitores de língua portuguesa, contamos hoje com ótimos tradutores, especializados em diversas línguas e nos mais renomados autores. Mas nem sempre foi assim.


Há traduções de obras clássicas que em vez de trazer a obra para o bom português, levam-na para um idioma confuso, supostamente sofisticado, de difícil leitura, com as palavras em tal desordem que parecem estar brigando umas contra as outras. Essas traduções, embora em sua maioria antigas, continuam à venda, pois algumas editoras consideram apenas o fato de não ter de pagar direitos autorais por elas. O mais grave, a meu ver, é que muitos leitores distraídos atribuem à obra original os vícios da tradução, criando assim uma barreira entre ele e a obra, o que é uma pena. Um exemplo típico é a tradução dos nobres viscondes portugueses de Castilho e Azevedo para o Dom Quixote de La Mancha; tradução essa tão infeliz que, mesmo sem saber espanhol, é mais fácil para o leitor de língua portuguesa ler o Dom Quixote no idioma original.

Também muitas traduções da literatura clássica grega costumam afastar dos textos o leitor, que acaba identificando a arrogância e o hermetismo das traduções como características dos originais. Felizmente, o leitor de língua portuguesa que quiser ter o prazer de mergulhar na cultura grega por meio de seus clássicos, pode encontrar excelentes traduções. Abaixo, minhas recomendações, que incluem um livro sobre mitologia grega e um dicionário.

Ilíada e Odisseia, de Homero, nas traduções de Frederico Lourenço, Edições Cotovia.

As seguintes tragédias, todas editadas pela Jorge Zahar, com traduções de Mário da Gama Cury: Trilogia Tebana (Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona), de Sófocles; Oréstia (Agamêmnon, Coéforas e Eumênides), de Ésquilo; Medéia, Hipólito e As Troianas, de Eurípides.

Metamorfoses, de Ovídeo, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Edições Cotovia.

Diálogos III (Socráticos), de Platão, tradução de Edson Bini, Edipro.

Mitologia, de Edith Hamilton, Martins Editora.

Dicionário da Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, Bertrand Brasil.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Cegueiras Brancas e Visões na Penumbra




"Nossa vida passa a ser de uma claridade única, não descansamos à penumbra em momento algum." (Nilton Bonder)
No livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, as pessoas são atacadas por uma cegueira branca, que conduz o mundo ao caos. Mas será possível uma claridade tão intensa que impeça a visão? Existirá mesmo essa cegueira branca? Para mim ela é tão real que quase posso tocá-la, e me parece que, se atingisse a todos, transformaríamos nosso mundo num inferno.
A cegueira branca é uma metáfora para a cegueira da consciência que acredita que pode saber tudo, iluminar toda a realidade. Nossa consciência e nossa vontade são instrumentos com que conseguimos ver o mundo apenas parcialmente, em meio a sombras. Uma das maiores dificuldades para o ser humano, depois de satisfeitas suas necessidades animais básicas, é admitir que sua consciência não domina o mundo e sua vontade não controla sequer os acontecimentos internos.
E esse não é um problema que aceite ficar sem remédios, por mais destrutivos ou dolorosos que sejam. Alguns se voltam para a busca insaciável daqueles prazeres animais básicos, para além da necessidade. Outros preenchem as sombras com monstros imaginários e vivem com medo de tudo que é desconhecido. Há quem se console com controle excessivo sobre o futuro, sobre algo ou sobre alguém. Muitos negam qualquer ordem além da que suas consciências possam alcançar e qualquer legitimidade ao mundo que não satisfaça sua vontade, enquanto outros preferem negar suas consciências e suas vontades para se entregar à resignação total, uma morte antes da morte. A maioria oscila entre todos esses remédios e ainda outros, até que diante de uma crise resolva enfrentar o problema de frente.
A solução prática satisfatória pode ser expressa, e já o foi em milhares de formas. Uma forma sintética e alegre é atribuída a Maomé: "Confie em Deus, mas amarre seu camelo". Em seu livro A Arte de Se Salvar, o rabino Nilton Bonder apresenta vários aspectos desta solução paradoxal, que afirma tanto Deus quando o indivíduo, tanto a vontade do Outro quanto a do eu (veja no quadro trechos extraídos do capítulo Sabendo Perder para o Universo).
Não se trata de uma batalha entre religião e ciência, mas de uma batalha, que se trava também no coração do homem, entre o fanatismo originado pela obsessão por saber tudo (cegueira branca), e a tolerância originada pela aceitação dos limites de nossa compreensão. Assim, o cientista Isaac Newton pôde dizer que era apenas uma criança brincando de pegar conchinhas diante do imenso mar do mistério, enquanto sacerdotes pecam contra o mistério quando se dizem conhecedores da verdade divina. O que estão fazendo é querer ver tudo, confundindo suas consciências e suas vontades individuais com a própria consciência e vontade divinas.


As pessoas estão muito sozinhas. E quando o problema está relacionado com os limites da consciência e vontade individuais, tentar resolvê-lo sozinho pode ser desesperador. Por isso, acredito que as pessoas precisam ir aos templos se encontrar em comunidade para se relacionar com o mistério, dividir seus sofrimentos, suas limitações e suas perdas, mas também suas graças, seus tesouros e seus sucessos, na confiança de que são partes de uma mesma ordem que não conseguem enxergar com clareza. Precisamos ir aos templos para descansar à penumbra, afinal diante do mistério somos crianças em um quarto escuro, e devemos aprender com as crianças, que não têm vergonha de pedir companhia para enfrentar um quarto escuro. Precisamos ir aos templos para coletivamente até mesmo brigar com Deus, duvidar dele, mas sem negá-lo definitivamente, sob pena de criarmos um vazio que poderá ser ocupado por cegueiras que afirmam tudo ver e tudo iluminar.

Sabendo Perder para o Universo (pg. 76 a 81)
(Nilton Bonder)
Saber perder para o universo é acima de tudo conhecer e respeitar as regras que fundamentam a própria vida. "D'us dá e D'us tira; abençoado o nome de D'us para todo o sempre", diz o texto bíblico, apontando para uma relação entre divindade e criação que para muitos deixa apenas subsídios para resignação. No entanto, a resignação não é a forma mais apropriada de demonstrar que sabemos perder para o universo. Saber perder para o universo é um conceito diretamente associado com a capacidade de saber ganhar do universo. Trata, portanto, da determinação da medida exata em que devemos alimentar expectativas em relação à vida, em combinação com a medida exata com que devemos nos permitir um comportamento marcado pelo desapego.
(...)
Este comportamento representa entrar no jogo da vida para ganhar, amando a perda com a mesma intensidade que se ama a conquista, sabendo que uma é o avesso da outra e que é impossível ser grato por uma sem também o ser pela outra.
(...)
Devemos buscar como se tivéssemos perdido algo, como se tivéssemos o direito de reencontrá-lo; ao mesmo tempo devemos manter uma mentalidade de busca ao tesouro que, no caso de sucesso da busca, nos faz agradecer pelo tesouro, como se não tivéssemos direito ao mesmo. Este é o exercício diário que deveríamos realizar para aprender a perder para o universo. Aprender a perder para o universo é comportar-se corretamente quando no esforço por ganhar e quando se ganha do universo. A maneira pela qual recebemos algo do universo é fundamental, pois favorece ou não a capacidade de perder para o universo. Assim sendo, não deveríamos nunca deixar de reconhecer no conceito teórico de "D'us dá e D'us tira" a dimensão violenta que existe também em se experimentar o "receber" (no mínimo tão violenta quanto a percepção que temos daquilo que nos é tirado).
(...)
Saber perder para o universo é abrir mão de forma artística do controle nestas duas variáveis – busca e resultados. Na busca, abrir mão do controle é não se deixar levar pela lógica que reprime (e por fim suprime) a crença de que há algo para ser encontrado. No resultado, abrir mão do controle é permitir a si mesmo a surpresa de ter encontrado algo de cuja existência se tinha certeza na busca. Quando, no entanto, o resultado é a perda e nada encontramos, não se registra nenhum efeito de mágoa, uma vez que esta é uma reação de quem espera, e não de quem se surpreende no ato de encontrar.
Saber perder é, portanto, um comportamento "contraditório", onde esforço e expectativas não compartilham de uma mesma realidade. A conexão entre uma busca com fé e a gratidão por um resultado é obtida por uma atitude de vida muito especial.

(texto publicado na edição de abril da Revista da Sexta)

Colagem

“Que é a tolerância?
É o apanágio da humanidade. Estamos todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a primeira lei da natureza.” (Voltaire, em Dicionário Filosófico)

O diabo são os outros!

O diabo são os outros?

O diabo sou eu! Nada do que é humano me é estranho. Dentro do meu coração está o ódio, a intolerância, a violência, o egoísmo; meu coração abriga todos os assassinatos, todos os crimes, todas as vilanias já cometidas pela humanidade. No entanto, nem eu, nem a maioria de meus pares humanos, transformamos em ato todas as maldades que nossos corações abrigam. Difícil dizer os motivos dessa aparente nobreza, talvez quase sempre uma mistura de motivos dignos e mesquinhos. Difícil julgar quem atravessou a linha, difícil julgar os monstros dos jornais; afinal, se procuro bem, são meus monstros.

Não julgueis! Quem nunca pecou que atire a primeira pedra! Quem sabe, realmente, o que fará amanhã quem cometeu um crime ontem? E o que fará amanhã esse que hoje se abaixa para apanhar a pedra? E o que fariam ambos em outras condições?

Não julgar não significa que não lutemos pelo que chamamos de Justiça, uma tentativa pragmática de proteger as pessoas, de conter o mal nas ruas com medidas eficientes de vigilância, julgamento e aplicação de penas.

Não julgar não significa perder a bússola, a orientação pelo bem, mas reconhecer que se precisamos de bússola, de orientação, é porque temos também dificuldade para seguir no rumo certo.

Não julgar significa não linchar, não apedrejar, não torturar, não abandonar, não excluir e dividir mais do que as paredes inevitáveis das prisões, das casas, dos medos e desejos.

Não julgar significa não cair na tentação que diz: “você solta seus demônios, então eu solto os meus!” E juntos transformamos o mundo num inferno.

Não julgar significa ter esperança. Esperar que além da luta entre o mal e o bem, que se trava no meu coração e nas ruas... além dessa agonia que consome o homem... mais fundo no coração de todo homem haja uma luz que pulsa na natureza e que pode ser revelada... uma luz que sinto em um breve momento de paz, deitado na grama à sombra de uma árvore.
(texto publicado na edição de maio da Revista da Sexta)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Pela janela, a morte

Pare tudo. Bem perto da mesa onde trabalho uma senhora foi atropelada e morreu. Ouvi um grito e parei. Tive medo de ir à janela. Depois fui. Vi um ônibus azul; os passageiros saíam, olhavam para trás e se horrorizavam. A minha miopia e a copa da árvore não me deixavam ver o corpo estrangulado pela roda de trás do ônibus. Vi o movimento das pessoas, a chegada da polícia, dos bombeiros, e de uma espécie de grande papel laminado que serviu para enrolar o corpo e atenuar o horror da cena.


Diante do terrível fato de que uma senhora foi atropelada e morreu bem perto de mim, parece difícil acreditar que minha vida seguirá . E no entanto seguirá. Os jornalistas já transformam a morte em notícia, os agentes públicos registram a cena e retiram o corpo para outros trâmites. Logo sairá o ônibus azul e a rua será reaberta para o tráfego, esquecida daquela morte.

Livrai-me, ó Pai, de todo o mal. Livrai, acima de tudo, meus filhos de todo o mal. Mas, já que não tenho outra opção, seja feita vossa vontade.

Felizes os filhos, que não temem pelos pais, e mal temem por si.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Lamento

Posso desperdiçar minha vida inteira,
A lamentar tudo aquilo que não sou.

Travessias

Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
(João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)


...estamos todos caminhando rumo a um mesmo destino, que não é nada espetacular. É preciso perceber a hora de tirar o pé do acelerador, afinal, quem quer cruzar a linha de chegada? Mil vezes curtir a travessia. (do texto cresça e divirta-se, de Martha Medeiros)

Nesse ano e meio fiz uma travessia. No sentido das travessias do Riobaldo em Grande Sertão. Travessia de rio. A gente conhece o ponto de partida, mira um ponto de chegada e se lança no rio, em uma canoinha trêmula e sem saber nadar. O real acontece mesmo durante a travessia e a gente não consegue agarrar. Só percebe quando chega do outro lado; mas sempre em um lugar novo mais abaixo no rio, diferente do destino que a gente tinha imaginado.

O que aprendi? Poucas coisas: que família é para a gente dar e receber, não para tirar e cobrar; que livre a gente tem de ser, não pedir por favor... Mas o que aprendi mesmo é que temos de nos lançar em novas travessias, sempre, enquanto vivermos. Pode parecer mais seguro ficar parado onde chegamos. Mas é ilusão. Na vida não se consegue ficar parado, praias são invenções. Ou bem nos lançamos ao rio, em busca de aventuras de descobertas, acertando e errando, trêmulos; ou, ainda que com vida, deixamos de viver, presos, querendo parar o que não se firma, repetir o que não se repete, voltar ao que já não há.
(Anotações de 2005)

Antologia de Manuel Bandeira

Poesia é síntese criativa. Dispensa exemplos. Ou é o exemplo dado de tal forma que reflita o mundo. Dispensa explicações que não sejam poéticas. Manuel Bandeira, além de ser sintético na sua poesia, foi sintético na obra. Publicou apenas o essencial. Por isso, não faz sentido fazer uma antologia de poemas de Manuel Bandeira. Sua obra já é antológica, e o livro Estrela da Vida Inteira reune todas as suas poesias. Mas o próprio Manuel Bandeira fez uma antologia de si mesmo, reunindo em um poema as frases mais ricas de sua poesia. O poema chamado Antologia pode ser lido abaixo, com indicação dos poemas de onde foram recolhidas as frases.

Antologia (Manuel Bandeira)

A vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
Os corpos se entendem mas as almas não.
A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Vou-me embora p’ra Pasárgada!
Aqui eu não sou feliz.

Quero esquecer tudo:
- A dor de ser homem...
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.

Quero descansar
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
a vida inteira que podia ter sido e não foi.
Quero descansar.
Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.
(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)
Quando a Indesejada das gentes chegar
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
(Poemas: Soneto Inglês nº 2; Arte de Amar; Pneumotórax; Vou-me embora p’ra Pasárgada; Cantiga; Presepe; Resposta a Vinícius; Cantiga; Poema Só para Jaime Ovalle; Pneumotórax; Cantiga; A Morte Absoluta; Lua Nova; Consoada)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A vida é perto

A vida é perto. Esse é o nome do DVD da Olívia Byington. Nem vou comentar sobre o DVD, pois sou suspeito. Afinal, por volta dos meus vinte anos eu fui apaixonado, não pela cantora que nunca conheci, mas pelos shows da Olívia Byingon, que eu perseguia no Rio de Janeiro. O meu destaque aqui é o título do DVD. A vida é perto. Perto.

Esses dias tudo vem conspirando para me dizer isso: “A vida é perto”, embora com frequência busquemos a vida em um lugar distante. No passado, em algo que não aconteceu, no futuro, em outra vida, mesmo na morte, e até num simples bilhete de loteria. E a vida ali. A felicidade ali. A beleza ali. Sempre ao nosso lado. Perto. Mas somos incapazes de enxergar. Lembra-me a forte imagem de que o homem é como um louco que já está dentro da festa – da vida, da felicidade, da beleza – no entanto desesperadamente batendo na porta pelo lado de dentro para entrar.

Comecei a pensar nisso depois de ler “Pearls before breakfast”, reportagem preciosa de Gene Weingarten publicada no Washington Post e disponível no link abaixo:

http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2007/04/04/AR2007040401721.html?hpid=topnews

A equipe do Washington Post conseguiu colocar o violinista Joshua Bell tocando incógnito, como artista de rua, seis peças de música clássica em uma estação de metrô de Washington. A reportagem, além de narrar as reações de quem passava ao lado do violinista rumo ao trabalho, analisa a correria do homem moderno, com os olhos sempre voltados para um objetivo impessoal à frente – riqueza e sucesso profissional. Nessa correria, quase sempre é incapaz de enxergar, e ouvir, o que está ao seu lado, bem perto. O escritor britânico John Lane entende que a experiência com o violinista no metrô não significa que o homem moderno não tenha capacidade de entender o belo, mas talvez o belo seja irrelevante para ele. O texto de 14 páginas deve ser impresso para ser lido e relido com calma, refletindo e apreciando sua elaborada construção, seus detalhes. Como aperitivo leia os primeiros versos do poema Leisure, de W. H. Davies, e um parágrafo da reportagem:

“What is this life if, full of care,
We have no time to stand and stare”

“If we can’t take time out of our lives to stay a moment and listen to one of the best musicians on Earth play some of the best music ever written; if the surge of modern life so overpowers us that we are deaf and blind to something like that – then what else are we missing?”

Alquimia

“O nosso amor é tão bonito,
Ela finge que me ama e eu finjo que acredito”
(da música Falso Amor Sincero, de Nelson Sargento)


Li o primeiro capítulo de Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. O mesmo sabor - a mesma sensação de mil e uma noites; de mundo em suspenso; de esperança - que provei quando li o primeiro capítulo de Os Filhos da Meia Noite, de Salman Rushdie.


De repente, um narrador poderoso começa a contar histórias e todos os meus problemas, minha seriedade e meus planos de vingança se dissolvem. Suspendo execuções, a cicuta volta para o armário, e me torno discípulo atento desse alquimista que transforma o mundo em algo precioso.


Sei que vou ler o livro todo, dia a dia, capítulo a capítulo, caso a caso. Uma suave esperança de aprender as artes de alquimia do mestre. Também eu, poder deitar um novo olhar sobre o mundo em que vivo e transformá-lo em beleza, em cores, em texturas, em sabores.


Será que minha visão é tão pobre que só consigo enxergar no mundo a crua e seca realidade devastada e dizer não? Mil e uma vezes a mentira, a ilusão, a fantasia, o riso, a brincadeira, a leveza. Me ensinem, discípulos de Sherazade, me ensinem a passar pela vida num tapete voador.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Sobre Babel e o pluralismo

"A unanimidade é uma burrice" (Nelson Rodrigues)
“Se não houvesse uma Babel, seria preciso inventá-la” (Karl Popper)
A história narrada no capítulo 11 do Gênesis é curta e simples. Todos os homens falam a mesma língua e as mesmas palavras. Todos andam na mesma direção e encontram um vale onde se estabelecem. Todos concordam em criar uma cidade, dar-lhe um nome e construir uma torre que penetre os céus. Deus desce para ver o que os homens estão fazendo e não gosta nem um pouco. Resolve então confundir a linguagem dos homens para que não mais se entendam uns aos outros, cessem de construir a cidade e dispersem por toda a terra. A cidade abandonada com sua imensa torre passa a ser conhecida como Babel, nome derivado do termo hebraico para “confundir”, porque ali Deus confundiu a linguagem dos habitantes da terra e os dispersou.
O mais interessante não é a história, mas nossa relação com ela. Parece que temos uma profunda nostalgia dessa cidade antes da dispersão, e desses homens que caminham unidos na mesma direção, seguem os mesmos planos e falam a mesma língua e as mesmas palavras. As palavras Babel e confusão são tomadas com frequência em sentido pejorativo, como se fossem invenções do Diabo ou um nebuloso castigo divino.
Como nos custa entender que a confusão das línguas, a dispersão dos caminho e as discordâncias são abençoadas, enquanto a busca pela uniformidade de palavras e objetivos nos leva ao inferno e à construção de tristes cidades desabitadas. Às vezes nossos sonhos, mesmo os mais belos, nos enganam. Somente a experiência, a História e a reflexão crítica podem nos mostrar os infernos que percorremos tentando submeter os homens a uma idéia única: inquisição, terror, nazismo, comunismo e outras tiranias.
E não é só isso: a reflexão sobre Babel abre caminho para refletirmos sobre nossas intolerâncias familiares, nossos ódios cotidianos, e até a intolerância e as guerras que travamos no interior de nossas almas quando não aceitamos o pluralismo de desejos, caminhos e palavras que nos habita.
(Crônica publicada na Revista da Sexta de agosto/2009)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O estranho caso do bem e do mal


“O homem será um dia caracterizado pela sua constituição multiforme, incongruente, com suas facetas independentes umas das outras.”
(Dr. Jekyll, em “O Médico e o Monstro”)

“Nosso corpo é uma estrutura social de muitas almas”
(Nietzsche, em “Além do Bem e do Mal”)

Quando dou uma ordem para mim mesmo... Quem dá a ordem? E quem a cumpre, ou não? Parece que o século XIX na Europa foi um palco privilegiado não só para a percepção de que o homem reúne dentro de si muitas vontades, mas também para a crítica da moralização dessas vontades.

Em 1886 foi publicado “O Estranho Caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde”, novela do escocês Robert Louis Stevenson, mais conhecida como “O Médico e o Monstro”. O livro conta a história do Dr. Jekyll, que, funcionando como cobaia de sua própria experiência, consegue se transformar no Sr. Hyde, ser repulsivo que concentra todos os desejos e sentimentos ocultos do Dr. Jekyll, como sensualidade, egoísmo e ódio. Ao ler o livro, temos a impressão de que o Sr. Hyde (hide - esconder) não é o mal que se encontra por natureza dentro de todo homem, mas uma deformação surgida no homem obrigado pela moralidade vitoriana a reprimir seus sentimentos mais humanos. Com a palavra, Dr. Jekyll:
“Na verdade o maior de meus defeitos era uma disposição por demais jovial e impaciente, que tem feito o prazer de muitos, mas que eu considerava inconciliável com o meu grande desejo de ser reconhecido como pessoa séria e respeitabilíssima. Por isso tratei de ocultar os meus divertimentos e comecei a olhar à minha volta, a fim de avaliar os progressos feitos e a minha posição na sociedade. Já era profunda a duplicidade do meu caráter. Muitos homens teriam confessado com orgulho certos erros. Eu, todavia, tendo em vista os altos propósitos aos quais visava, só podia envergonhar-me dessas irregularidades: escondia-as, com mórbida sensação de culpa e vergonha. Assim exigia a natureza de minhas aspirações, mais do que a própria degradação dos pecados; ia-se cavando em mim, mais do que na maioria dos mortais, esse profundo fosso que separa o mal do bem e divide e compõe a dualidade da nossa alma.”

Também em 1886 foi publicado o livro “Além do Bem e do Mal”, do alemão Friedrich Nietzsche. Um ponto recorrente no livro e também na obra do autor é uma crítica da tentativa de purificação do homem levada a cabo pela moralidade religiosa da época. Para ele, reprimir sentimentos fortes, em vez de buscar meios seguros de canalizá-los e escoá-los, era como represar águas revoltas, que têm assim ampliado seu potencial de destruição. Além disso, destruir as paixões e os desejos para evitar-lhes a estupidez e as conseqüências desagradáveis seria tão estúpido como se maravilhar com um dentista que arranca um dente para fazer cessar a dor. Nietzsche supõe que os afetos de ódio, inveja, cupidez e ânsia de domínio são essenciais à vida e, portanto, devem estar presentes na economia global da vida, se a vida é para ser realçada:
“Com todo o valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, desinteressado; é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente no fato de serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais, a essas coisas ruins e aparentemente opostas.”

Essa ambição de aniquilar os desejos e paixões no interior do homem me parece típica de uma ideologia religiosa que se desenvolveu no interior das reformas (protestante e católica) do cristianismo. Na Carta da Felicidade, de Epicuro (cerca de 350 a.C.), bem é o que nos dá prazer e mal o que nos faz sofrer, e o homem é exortado à temperança e à ética na ação por meio da avaliação de qual comportamento lhe garante um prazer mais duradouro, e de qual comportamento, embora garantindo um prazer imediato, lhe traz mais dor:

“Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advém efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.”
Mas o antídoto mais eficaz contra o excesso de severidade é o bom humor. Com uma risada, Voltaire (1694-1778) abre as janelas do claustro religioso e, de uma só vez, critica a moralidade da época e propõe um julgamento mais prático do homem, na linha de David Hume (1711-1776), que defende que o valor de um homem depende de suas qualidades úteis e agradáveis a si mesmo e aos outros. Portanto, encerro meu passeio pelo bem e pelo mal com o último parágrafo do verbete Virtude, do Dicionário Filosófico, de Voltaire, que sintetiza o assunto desta crônica:
“Dizem alguns teólogos que o divino imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico astucioso, que, não contente de governar os homens, ainda queria ser estimado por eles; que fazia reverter a si próprio os benefícios que fazia ao gênero humano; que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples vaidade, e que apenas enganou os homens com sua virtude; neste caso exclamarei: ‘Meu Deus!, dai-nos muitos velhacos desta laia!’”
(publicado na Revista da Sexta de julho)

terça-feira, 9 de junho de 2009

Antifilme Dúvida

O filme Dúvida deixa o espectador desconfortável. Primeiro, porque em parte vamos ao cinema e ao teatro como voyeur, para ver o que não vemos no dia-a-dia. E no filme Dúvida não se vê quase nada; os principais acontecimentos permanecem ocultos aos olhos. Mas é justamente nesse ocultar que o filme combina brilhantemente seu assunto com o modo como é feito. Normalmente num filme os acontecimentos principais são mostrados, mais cedo ou mais tarde, o que permite a quem assiste sair seguro da "verdade" da sala de cinema. Em "Dúvida", não vemos quase nada do que acontece, só temos acesso ao que é falado, às fofocas, sobre os acontecimentos, como na vida. No filme, isso acaba por nos deixar em dúvida. Na vida, estranhamente, apesar de não vermos também quase nada, na maior parte do tempo temos plena confiança em nossas ilações. Mas, às vezes, também, por um motivo ou outro, desmoronamos de nossas certezas, como aconteceu com a freira conservadora no final do filme.
Leia a crítica do filme Dúvida escrita por Branca Machado em http://machadobranca01.blogspot.com/2009/10/blog-post.html

Colagem II

"Hoy estoy peor que ayer, pero mejor que mañana"
(Novellis – Balcarce)

"Hoje estou pior que ontem, mas melhor que amanhã."

Em uma música, o significado é percebido e reforçado na divina confusão de ritmo, melodia e letra. A frase acima é cantada numa música carnavalesca do grupo argentino La Mosca, com muita alegria. E me parece uma boa filosofia de vida. Se alguém se convencer que a vida é uma ladeira abaixo, e disso fizer uma alegria, transformará a vida numa festa. Afinal, se a tendência é que as coisas estejam piores no futuro, e o ontem não volta, o hoje deve ser visto com um novo olhar, como o melhor momento que tenho. Aliás, a tendência de considerar que as coisas vão melhorar no futuro, ou até depois da morte, é uma das maiores causas de desperdício de vida.
"As idéias estão no chão, você tropeça e acha a solução"
(Sergio Britto – Paulo Miklos – Branco Mello)
A música dos Titãs fala direto àqueles que estão desesperados, ou desesperando, ao pensar muito na vida. Pensar na vida, mesmo sendo necessário, leva a esse desespero. Porque no pensamento a vida não tem solução. Então a música faz um chamamento a quem está perdido nos pensamentos: "Ponha os pés no chão e caminhe, vá à vida. É certo que a vida propõe problemas, mas para cada problema real que a vida te propor, também haverá uma solução, no chão, ao seu alcance."

Pensar muito na vida, preocupando-se, transforma o breve momento em permanência, a leveza em gravidade. Um avião parado pesa muito, mas coloque-o em movimento e ele irá voar. Com a vida acontece de forma diferente: naturalmente ela está em movimento, leve, mas as mentes preocupadas freiam o movimento natural da vida, tornando-a pesada.

"E o que foi feito é preciso conhecer, para melhor prosseguir"
(Milton Nascimento – Fernando Brant)

Para viver bem, é fundamental conseguir se posicionar mentalmente no tempo e espaço presentes. Mas o presente sem considerar o passado e o futuro não é nada. E quem tenta "viver o momento", sem memória e sem objetivos, sem perceber a conexão desse momento com a linha do tempo, sente-se perdido entre alguns momentos de euforia e uma sensação geral de desânimo, de desperdício. O passado é um espelho que reflete quem somos, e só olhando para esse espelho podemos ver nossas tolices. O aberto do futuro nos lembra que o trabalho do espelho ainda não terminou, e que de nossas ações no presente depende a imagem que deixaremos refletida no espelho do tempo.
(texto publicado na edição de junho da Revista da Sexta)

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Fogohorizonte

O link abaixo leva para a minha crônica "Coloquemos na conta do Acaso" publicada no blog da Fogohorizonte, torcida do Botafogo em Belo Horizonte.

http://fogohorizonte.blogspot.com/2009/05/sem-palavras.html

Desistências

Você vai deixando de fazer as coisas para não se aborrecer,
E depois fica aburrecido por não fazer nada.

Fogo

O alimento da vida é o oxigênio
O oxigênio é um ótimo combustível
Viver é então queimar, se consumir no fogo

Religião

Sou a favor de trazermos a religião para a terra, para o meio de nossos problemas, nossas dúvidas, inquietações e pecados. Se a religião fica apenas lá no céu, para que nos serve?

quarta-feira, 8 de abril de 2009

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Movimento

O que pode corrigir o coração do homem? Essa sensibilidade desmesurada ao que nos é feito... esse julgamento cruel de tudo que nos cerca.... essa cegueira para o que fazemos aos outros... esse justificar e absolver tudo que fazemos. No entanto, é preciso andar pelo caminho oposto: tolerar o que é feito a nós e dar uma grande atenção ao que fazemos aos outros.

Felicidade

A felicidade é um broto que explode do fundo escuro da terra, de uma semente pequena e solitária. Ao pobre príncipe Sidarta havia sido negada a felicidade ao ser-lhe negada a tristeza. No momento em que ele enxerga a destruição causada por um arado na terra, a possibilidade de nascimento, de vida, de iluminação lhe causa imensa alegria. Ao encarar a doença, a velhice e a morte de frente também lhe nasce o breve encanto da eternidade.

O inferno das boas intenções

O meio é tudo. O ser humano valoriza tanto o sentido, o fim, a meta a ser alcançada, que com freqüência não consegue enxergar o meio, o caminho, a ação que se desenvolve. Julgam os atos, atuais, reais, pela qualidade da intenção, irreal. Alguns, conscientes de suas boas intenções, abdicam de qualquer ação que possa dar alguma realidade aos seus belos sonhos. Outros, de espírito mais agitado, são ainda mais perigosos, pois tudo que é feito é tomado como adequado e belo tendo em vista o fim visado. Bem diz a sabedoria popular que o inferno está cheio de boas intenções. De fato, o que nosso mundo tem de inferno é quase que exclusivamente devido às ações impulsionadas por boas intenções. A má intenção, tão exorcizada, de fato existe, mas tem muito pouco poder. E, se podemos construir um inferno cheio de boas intenções, não precisamos também nos assustar tanto com nossas más intenções, pois um céu pode estar cheio delas.
Há uma tal confusão entre intenção e ação, que muitos tomarão a frase acima como um estímulo a más ações.

Criança

A gente tem sempre que crescer para nunca deixar de ser criança.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Leitura e vida

Que livros ler? Que tipos de livro ler?
Não sei, tenho lido livros que tratam de ideias e livros que contam histórias, ou estórias, como queria Guimarães Rosa.
Se viver fosse entender a vida, sem dúvida deveríamos ler livros que tratam de ideias, ou que apresentam ideias na tentativa de decifrar a vida. Mas viver não é entender a vida, mas lançar-se a ela. E se é louvável um apelo à racionalidade para não corrermos o risco de nos transformarmos em franco atiradores apaixonados, a leitura de livros também pode, passados certos limites, transformar-se numa forma de fuga do viver, da responsabilidade em que a vida nos joga. Nesse ponto, talvez fosse melhor escutarmos o apelo da música que movimenta o nosso corpo.
Se viver fosse viver o máximo possível, o mais intensamente possível, recomendaria os livros de histórias. Mas viver também não é isso, mas nos apossarmos da nossa vida (única e passageira) e respondermos aos seus desafios (também únicos e passageiros).
Claro, nossas respostas se relacionam com o que entendemos da vida, e muitos precisamos da ajuda de livros sobre ideias para escaparmos de certas armadilhas em que nossas mentes caem. Também precisamos de experiência, de exercitar a capacidade de imaginação, e de exorcizar nossos demônios vivendo-os de uma maneira segura, e para esses três objetivos são fundamentais os livros que contam histórias, bem como o teatro e o cinema de qualidade.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Ciência e Poesia

A ciência é a tentativa do homem de descrever o mundo além do que pode ser observado e do que já é conhecido.
A poesia (religiosa ou não) é a tentativa de por meio da fantasia penetrar no mundo, ali onde toda descrição se cala, mas onde (talvez) se possa encontrar seu sentido.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Vazio

Com que ímpeto enchemos nosso armário de roupas, nossa estante de livros, nossa vida de compromissos, nossa cabeça de certezas. Não, não, o que quero é espaço vazio. Estou vivo. Não sou um túmulo, uma estátua ou um quadro.
Muita calma ao ir às compras, ou aos compromissos, ou às ideias. Veja o que realmente te parece essencial, e se não deves antes liberar espaço para poder bem receber. Não vá abarrotar os armários visíveis e invisíveis de entulhos. Não vá se acorrentar a bolas de ferro.
É certo que algumas pessoas têm muitos planos e compromissos para você, a ponto de não sobrar nenhum espaço. Não se deixe acorrentar, respeite a si, do contrário não terás nada de seu para dar.

Caminhada

Há momentos na vida que me dão oportunidade de atitudes belas, grandiosas. Mas frequentemente não estou à altura desses momentos. Na hora da oportunidade, não a vejo, ajo de forma vil, egoísta, ou me escondo, fujo. Depois, sim, com calma e distância enxergo como deveria ter agido e me envergonho.
Mas por que esse movimento de desejo, fracasso, culpa? Essa inadequação entre pensamento e ação? Talvez por esse hábito de enxergar apenas tudo ou nada, agora ou nunca. É preciso reaprender a andar, que se resume na atitude simples e difícil de dar um pequeno passo - avançar um pouco uma perna, sentir o chão logo à frente, deslocar o peso para esse ponto e novamente avançar com a outra perna para outro ponto um pouco mais à frente. E readaptar o olhar para enxergar o que está próximo, e os pequenos avanços, retrocessos e desvios.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Surreal

Basta que algo saia da rotina, ou um acontecimento inesperado, para que a vida nos pareça (ou se revele) surreal. Sentado sobre um canteiro da calçada, esperando o carro no lava-rápido, um passarinho passou sobre mim. Acompanhei seu voo: ele passou sobre o muro do lava-rápido, fez uma curva para a direita, bateu na parede de uma casa e caiu, asas abertas, desaparecendo atrás do muro. Ainda esperei que o passarinho ressurgisse por detrás do muro. Nada, silêncio, ninguém, além de mim, viu.

Remédio

As dores no pescoço são o melhor remédio para o excesso de leitura. Elas me dizem: "Vai, Roberto. Levanta-te e anda. Vai à praça caminhar."

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Mantra

Antes que eu desista não é o título desse blog. É um mantra pro seu autor. Vou fazer um blog antes que eu desista. Vou postar antes que eu desista.
É certo que pessoas agarradas a certezas são às vezes perigosas. Mas a tão bem vinda autocrítica não pode se transformar em gás paralisante. Essa paralisia é a tendência contra a qual luto, e o motivo do mantra.
Toda ação envolve o risco de erro, mas depois de algum cuidado com os resultados mais diretos e passíveis de imaginar da sua ação em relação aos outros, é preciso agir. É preciso viver, antes que se desista. Depois, sim, presentes os desdobramentos reais da ação, ter coragem de encarar os erros e corrigir quando e como for possível.