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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Prece de passagem

Pai, diante de Ti, somos como crianças diante de um Pai bondoso.
Não compreendemos tudo que fazes
(às vezes não compreendemos quase nada),
mas tudo que somos e temos vem de Ti.
Que a fé possa sempre morar no nosso peito,
como uma chama que resiste a qualquer vendaval.

Desculpe, Pai, pela cegueira, pelas vezes que te negamos, com palavras ou gestos.
Perdoe as nossas birras, o nosso cansaço, nossa mania de reclamar.
Nós, filhos pequeninos, quase não percebemos tudo que já recebemos.
Nem o que nos é dado a cada ano, a cada dia, a cada minuto, absolutamente de graça.
Obrigado, Pai, pela vida, pela saúde, pela companheira, pelos filhos, e pelos amigos.
Por tanta coisa boa que aconteceu nesse ano de 2009.
Sabemos que contigo também podemos contar nas dores,
para encontrar consolo e força para seguir em frente.

Que seja feita a tua vontade,
pois nenhum mal vem de ti.
Mas, por favor, se for possível,
abençoe as nossas famílias com muita paz e saúde em 2010.
E nos ilumine para que a cada momento possamos encontrar
os caminhos que levam ao nosso eu mais profundo e ao próximo.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Cem anos de solidão - edição especial

Há livros que já sabemos que vamos ler e gostar, mas esperamos, às vezes anos, pelo momento propício, como quem espera a chegada de um amor. Assim foi com Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, que li apenas há alguns meses, quando encontrei na livraria a edição comemorativa dos seus 40 anos. Quem estuda ou estudou espanhol, já leu ou ainda não leu Cem Anos de Solidão, não deve perder a oportunidade desse encontro: Cien Años de Soledad, edición conmemorativa, Real Academia Española y Asociación de Academias de la Lengua Española, livro verde com capa dura vendido no Brasil por cerca de trinta reais. Além do texto revisado pelo autor, da árvore genealógica da família Buendía e de um glossário, essa edição conta com excelentes ensaios sobre o livro, como Cien Años de Soledad, Realidad Total, Novela Total, de Mario Vargas Llosa, e Gabriel García Marquez, en Busca de la Verdad Poética, de Víctor García de la Concha.

sábado, 12 de dezembro de 2009

NATALINO

“Se negamos nossa própria dor, torna-se fácil descartar a dor alheia”.
(Karen Armstrong)

O Natal é universal. Toda religião é universal. Cada religião tem seus ritos, seus símbolos, suas histórias. Mas os religiosos sabem, ou deveriam saber, que tudo isso são apenas formas de vislumbrar, de remeter a algo que não pode ser definido, que não pode ser totalmente revelado, que não pode ser, em essência, nomeado. Deus nos livre de quem confunde o transcendente com os símbolos particulares de sua religião e defende cruzadas contra as palavras, os ritos, e os mitos das religiões dos outros.

O Natal é comemorado no dia 25 de dezembro, pois no hemisfério norte é nesse dia que o sol, que a cada dia durante o inverno desaparece mais cedo, condenando o mundo às trevas, reverte essa trajetória e volta a iluminar a terra. Comemora-se o nascimento de Jesus como o surgimento de uma luz que vem socorrer um mundo prestes a desaparecer nas trevas. E essa luz é Deus, e Deus é essa luz. Quem não reconhece esse mesmo padrão, revivido de dez mil formas, na arte ou dentro de si mesmo? Quem não tem intimidade com um mundo que progressivamente perde a luz, se descolore e parece fadado a sucumbir à falta de sentido? Um mundo que, no entanto, volta milagrosamente a ser iluminado, volta a fazer sentido sem que se saiba exatamente como nem por que.

Mas cada luz que nasce é sempre breve. Novamente irá sofrer, enfraquecer e morrer. Jesus morre crucificado. Quando as mulheres vão procurar pelo seu corpo, lhe falam: “Por que procurais entre os mortos aquele que está vivo?” Dois discípulos tristes com a morte de Jesus encontram um desconhecido que lhes fala sobre a mensagem das escrituras, sem que isso possa lhes animar. Apenas quando esse desconhecido reparte o pão, os discípulos vêem Jesus aparecer diante deles, para logo desaparecer. Pois Deus não nasceu quando Jesus nasceu nem morreu quando ele morreu. Deus (ou o Bem, ou o Amor, ou o Tao, ou o Nirvana, ou Buda, ou Alá, ou Brahman) está em cada um de nós e em cada fenômeno do mundo, embora muitas vezes só possa ser visto como ausência. E aparece quando dois ou três homens se reúnem e dividem o pão, não importa em que época, em que lugar ou as palavras que eles falem.

Será que também hoje não vivemos dias tão sofridos, em que as trevas avançam, e as disputas religiosas nos põem diante da escolha entre viver sem religião ou viver com uma religiosidade em que os símbolos são distorcidos a tal ponto em que mais escondem do que revelam Deus? Será que devemos procurar entre os mortos o que está vivo? Ou será que é tempo de nascer também uma nova forma de religiosidade, que na realidade é a velha e original forma adaptada aos tempos de hoje?

Nessa época natalina, vejo a estrela de Belém indicando o livro “A escada espiral”, de Karen Armstrong. A autora apresenta, por meio de suas memórias e de seus dilemas pessoais, os dilemas da modernidade diante da religião, e aponta um caminho. Além do livro indicado, Karen Armstrong já escreveu livros de divulgação das principais religiões do mundo, para que muçulmanos, cristãos, judeus, e budistas, condenados ou abençoados pela história a dividirem o mesmo mundo, possam não se matar uns aos outros, mas se entender e dividir o pão:

“O que nosso mundo precisa agora não é crença nem certeza, mas compaixão ativa e respeito, expresso na prática, pelo valor sagrado de todos os seres humanos, inclusive de nossos inimigos.”
(texto escrito em dezembro de 2007)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Festa para a chegada da Ilíada e da Odisseia à Língua Portuguesa

Tal como quando na chegada de um amigo querido que esteve longo tempo em viagem prepara-se uma festa com muito vinho e boa música; assim os amantes de literatura que lêem em português deveriam dar uma grande festa para celebrar as traduções da Ilíada e da Odisseia feitas por Frederico Lourenço para as Edições Cotovia. Pois depois de mais de dois mil e quinhentos anos de aventura, os versos de Homero que sustentam a literatura chegam finalmente com vigor e fluência às praias da língua portuguesa.

Antes de embarcar na Odisseia, estou lendo a Ilíada. A Ilíada se concentra em um pequeno período durante a guerra de Tróia, que vai do desentendimento de Aquiles com o chefe das forças gregas, Agamémnom, passando pela luta entre Heitor e Aquiles, em que este mata Heitor em vingança da morte de seu amigo Pátroclo, e terminando com os funerais de Heitor, depois do acolhimento de Aquiles ao pai de Heitor, Príamo, que viera desarmado a sua tenda pedir o corpo do filho ao inimigo. Espalhados pelos seus 16 mil versos, o poeta lança mão de comparações, que servem não só para reforçar os fatos narrados, mas também para ampliar o universo do poema, com observações precisas sobre a natureza e as atividades do homem. Veja dois exemplos de comparações, ou símiles, retirados da Ilíada:

Porém no meio da planície alguns ainda fugiam como vacas
que um leão pôs em fuga no negrume da noite; a todas pôs
em fuga, mas é a uma que aparece a morte escarpada:
primeiro com sua dentição possante lhe agarra o pescoço,
e depois devora-lhe o sangue e todas as vísceras.
Era assim que o Atrida, o poderoso Agamémnom,
os perseguia, sempre a matar os da retaguarda em fuga.
(Canto XI, versos 172-178)

Ora de forma alguma Ájax, célere filho de Oileu,
se afastava de Ájax Telamónio, nem por pouco tempo.
Mas tal como em terra de pousio dois bois cor de vinho
com ânimo idêntico puxam o arado articulado e da base
dos cornos brota o suor em grande abundância;
e a ambos só o jugo bem polido mantém afastados,
esforçando-se na terra até o arado cortar o termo do campo –
assim se posicionaram os dois Ajantes, um ao lado do outro.
(Canto XIII, versos 701-708)

A composição de Homero não pode ser elaborada sem ajuda da escrita. Embora grande como um romance, toda a narrativa compõe uma estrutura elaborada e coesa. Os grandes acontecimentos do épico estão amarrados com versos antecipatórios espalhados por todo o poema. O caminho de Pátroclo até a morte é exposto em seus pequenos detalhes, com versos inseridos com precisão ao longo das batalhas entre os gregos e os troiano. Nessa estrutura, também impressiona o contraste entre o conhecimento do narrador a respeito dos desígnios de Zeus e a situação trágica dos personagens que tomam decisões no escuro a cada momento, sem nunca saberem com certeza as intenções do poderoso Zeus. O narrador tem intimidade com Zeus pelo simples motivo de posicionar-se no futuro e narrar fatos passados e conhecidos, sendo coerente durante toda a narrativa. Os personagens especulam, tateiam como cegos as intenções do destino, mas não fogem à tarefa do homem de decidir sua ação, ou mesmo inação, de acordo com sua consciência a cada momento. Diferentemente do narrador, que sabe, os personagens freqüentemente discordam sobre a interpretação do destino e sobre os valores que devem prevalecer:

“Nenhum homem além do destino me precipitará no Hades,
Porém digo-te não existir homem algum que à morte tenha fugido,
Nem o cobarde, nem o valente, uma vez que tenha nascido.”
(Fala de Heitor no Canto VI, versos 487-489)

“Tídida, vira em fuga os teus cavalos de casco não fendido.
Não percebes que a vitória de Zeus não segue no teu encalço?
Hoje é àquele homem que Zeus Crônida outorga a glória;
No futuro outorgá-la-á de novo a nós, se ele assim entender.
Nenhum homem poderia frustrar o pensamento de Zeus,
Por muito forte que fosse, pois ele é ainda mais poderoso.”
(Fala de Nestor no Canto VIII, versos 139-144)

“...Não penso que o Atrida Agamémnom me persuadirá,
nem os outros Dânaos, visto que não há consideração
para quem luta permanentemente contra homens inimigos.
Igual porção cabe a quem fica para trás e a quem guerreia;
na mesma honra são tidos o cobarde e o valente:
a morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança....”
(Fala de Aquiles, recusando-se a guerrear, no Canto IX, versos 315-320)

“Meu amigo, se tendo fugido desta guerra pudéssemos
viver para sempre isentos de velhice e imortais,
nem eu próprio combateria entre os dianteiros
nem te mandaria a ti para a refrega glorificadora de homens.
Mas agora, dado que presidem os incontáveis destinos
da morte de que nenhum homem pode fugir ou escapar,
avancemos, quer outorguemos glória a outro, ou ele a nós.”
(Fala de Sarpédon a Glauco, incitando à luta, no Canto XII, versos 322-328)