AVALIE, COMENTE, CRITIQUE; QUERO SABER SUA OPINIÃO

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Música de Brinquedo, do Pato Fu

Tenho alguns CDs por causa de uma ou duas músicas. Há outros em que várias ou mesmo todas as músicas são excelentes. Mas nos melhores CDs todas as músicas formam uma audição única e especial. Assim é o último trabalho do Pato Fu, Música de Brinquedo.

O clima do CD começa assim que pegamos a capa. As faixas coloridas em volta de braços e mãos de adulto, que delicadamente tocam pequeninos instrumentos de brinquedo, a sensação do alto relevo dos braços...

Música de brinquedo tem a capacidade de nos transportar à infância. Não me parece um CD para criança, mas um CD que vai pegar pela mão a criança que está lá no passado de todo adulto. A voz suave da Fernanda Takai em meio aos arranjos diversão do Pato Fu com os brinquedos, a participação das crianças, e as músicas...

As músicas são conhecidas, daquelas que todo mundo sabe cantarolar ao menos um pedaço. Quando entram na nossa cabeça acompanhadas dos arranjos lúdicos do Pato Fu, resgatam também o tempo passado que estava perdido num desvão qualquer da memória.

O fato é que boto Música de Brinquedo para tocar no silêncio calmo de meu apartamento...
...Trago esta rosa para te dar...
...Sonífera ilha, descança meus olhos, sossega minha boca...
...Sha na-na-na, na-na-na, It'll be all right...
...Levava uma vida sossegada, gostava de sombra e água fresca...
...I've got sunshine, on a cloudy day...
...A vida não é filme, você não entendeu...
...Love me tender, love me true...

E quando acaba Love me tender estou me sentido melhor. Mais leve. Quase flutuando pela sala.

Vai lá no blog do Pato Fu (http://www.patofu.com.br) para saber mais sobre o CD, sobre os instrumentos utilizados e ver vídeos (clipes, making of), inclusive "Boas Festas" (Eu pensei que todo mundo fosse filho de papai noel...) gravada para o Fantástico, que não está no CD. Vem mais Música de Brinquedo por aí.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Neste Natal, onde haja escuridão, que se acenda uma vela!

Embora não haja registro do dia em que Jesus nasceu, o Natal é comemorado no dia 25 de dezembro, desde que esta data foi escolhida no séc. IV pelo papa Julio I para celebração do nascimento do Salvador. Na época, no hemisfério norte o solstício de inverno caía no dia 25 de dezembro. No Império Romano já se comemorava no dia 25 de dezembro o Nascimento do Sol Invicto (Dies Natalis Invicti Solis), pois é no solstício de inverno que o Sol  que a cada dia vinha desaparecendo mais cedo, tornando os dias mais curtos – reverte sua trajetória e volta a iluminar a Terra, tornando a partir daí os dias cada vez mais longos. (Curiosamente, no hemisfério sul comemoramos o Natal no solstício de verão, quando o sol vai se afastando e os dias começam a ficar cada dia mais curtos.)

Comemora-se o nascimento de Jesus como o surgimento de uma luz que vem socorrer um mundo prestes a desaparecer nas trevas. E essa luz é Deus, e Deus é essa luz. Quem não reconhece este mesmo padrão, revivido de dez mil formas, na arte ou dentro de si mesmo? Quem não tem intimidade com um mundo que progressivamente perde a luz, esfria e parece fadado a sucumbir à falta de sentido? Um mundo que, no entanto, volta milagrosamente a ser iluminado e aquecido, volta a fazer sentido sem que se saiba exatamente como nem por quê.

Mas cada luz que nasce é sempre breve. Novamente irá sofrer, enfraquecer e morrer. Jesus morre crucificado. Quando as mulheres vão procurar pelo seu corpo, lhe falam: “Por que procurais entre os mortos aquele que está vivo?” 

Dois discípulos tristes com a morte de Jesus encontram um desconhecido que lhes fala sobre a mensagem das escrituras, sem que isso possa lhes animar. Apenas quando esse desconhecido reparte o pão, os discípulos veem Jesus aparecer diante deles, para logo desaparecer. Pois Deus não nasceu quando Jesus nasceu nem morreu quando ele morreu. Deus (ou o Bem, ou o Amor, ou o Tao, ou o Nirvana, ou Buda, ou Alá, ou Brahman) está em cada um de nós e em cada fenômeno do mundo, embora muitas vezes só possa ser visto como ausência. E aparece quando dois ou três homens se reúnem e dividem o pão, não importa em que época, em que lugar ou as palavras que eles falem.

Será que também hoje não vivemos dias tão sofridos, em que as trevas avançam, e as disputas religiosas nos põem diante da escolha entre viver sem religião ou seguir líderes fanáticos que mais escondem do que revelam Deus? Será que devemos procurar entre os mortos o que está vivo? Ou já é tempo de nascer uma nova forma de religiosidade, que na realidade é a forma antiga adaptada aos tempos de hoje?

A Escada Espiral, de Karen Armstrong
“O que nosso mundo precisa agora não é crença nem certeza, mas compaixão ativa e respeito, expresso na prática, pelo valor sagrado de todos os seres humanos, inclusive de nossos inimigos.”

Nessa época natalina, vejo a estrela de Belém indicando o livro “A escada espiral”, de Karen Armstrong. A autora apresenta, por meio de suas memórias e de seus dilemas pessoais, os dilemas da modernidade diante da religião, e aponta um caminho. Além do livro indicado, Karen Armstrong já escreveu livros de divulgação das principais religiões do mundo, para que muçulmanos, cristãos, judeus, e budistas, condenados ou abençoados pela história a dividirem o mesmo mundo, possam não se matar uns aos outros, mas se entender e dividir o pão.

Solstícios e Equinócios (sabendo um pouco mais)
Durante o ano, como sabemos, a duração do dia e da noite variam. No verão temos dias mais longos e no inverno dias mais curtos. Essa briguinha entre a luz e as trevas, o dia e a noite, tem no hemisfério sul aproximadamente esta trajetória. O solstício (sol parado) de verão ocorre no dia 21 de dezembro. O dia anterior foi o mais longo do ano, e a partir do solstício a cada dia a duração da noite aumenta e a do dia diminui. No dia 20 de março, equinóscio (noite igual) do outono, temos dia e noite de igual duração; 12 horas pra cada. Mas a duração da noite continua a crescer até que no solstício do inverno, em 21 de junho, a noite volta a ceder espaço e a duração do dia retoma sua trajetória de crescimento, de modo que em 22 de setembro temos outro equinócio, o equinócio da primavera. E em 21 de dezembro, repete-se o solstício de verão: a duração da noite volta a crescer e começa a recuperar o espaço que havia perdido para o dia.

Isso aproximadamente, pois a duração do dia não varia apenas durante o ano, mas também de acordo com a latitude em que estamos.  

(Postagem reciclada de um texto de dezembro de 2007 já aproveitado no blog em dezembro de 2009)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Conversa com Ovídio

“E se os outros animais, dobrados para baixo, olham o chão,
[Prometeu] conferiu ao homem uma cara virada para cima, e instruiu-o
a olhar para o céu e a erguer o rosto ereto para os astros.”

Na verdade, meu bom Ovídio, nós homens temos um pescoço feito para virar nossa cara tanto para o céu como para o chão. Se nos curvamos demasiadamente para o chão, andamos cabisbaixos, e sofremos dores agudas no pescoço. Se nos voltamos apenas para o céu, ficamos mais alegres a aliviados das dores. Mas, um belo dia, tropeçamos em um pequeno buraco ou numa simples pedrinha e, que lástima, acabamos com a cara no chão.

Pensando bem... talvez o Deus tenha posicionado nossa cabeça com os olhos mirando reto o horizonte. Em cima de um pescoço flexível, para que na travessia pudéssemos olhar para o céu, para o chão, para um lado, para o outro.

Há também um outro olho com que olhamos para trás. Mas este olho, a memória, consegue olhar pra trás sem nos quebrar o pescoço, com a face ainda voltada para frente, para o horizonte.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Minha Viagem Insana

(história que participou de sorteio promovido pelo blog www.viajenaviagem.com)

A viagem insana que vou contar é de muito, muito tempo atrás. Do tempo em que, com 23 anos, eu ainda morava no Leblon com minha mãe e estava tentando descobrir o que fazer da vida. Mas não me esqueço dessa pequena viagem, porque durante toda a vida agradeço a Deus por ter chegado vivo em casa (num reboque, mas vivo, e sem um arranhão).

Naquela época, meus amigos de Niterói misturavam viagem, carro e bebida; uma mistura explosiva que era considerada muito natural e segura. Naquele fim de semana, precisamente em 11 de agosto de 1990, fomos comemorar o aniversário do Carlos no sítio da família do Binho em Silva Jardim. Lá fui eu, sábado de manhã, céu azul, no Voyage mal movido a álcool da família, com os faróis cegos que iluminavam apenas três metros de chão. Mas não tinha problema, eu ia dormir por lá – por causa do farol. Nem passava pela minha cabeça que beber e dirigir podia ser perigoso.

O churrasco era insano: uma quantidade absurda de cerveja para um punhado de carne dura que mal se viu. E no entanto todo mundo estava adorando. À noite alguém lembrou que tinha uma exposição agropecuária num povoado vizinho. Como eu era um dos mais bêbados, também fui um dos mais insanos: entrei no Voyage cegueta e convoquei todo mundo para ir à exposição, batendo com a mão na porta do carro pelo lado de fora.

Não me lembro como cheguei lá. Só lembro que, a certa altura, fui dormir um pouco no carro. Quando o Plínio, que estava de carona comigo, chegou pra dormir também, eu disse: Vambora pro Rio. Ele topou e eu fui. Pra chegar ao Rio a viagem foi mais longa e conturbada do que eu podia imaginar.

Me lembro de alguns flashes. O carro subindo em um canteiro na bifurcação da estrada; o Plínio acordando e dizendo “por aí não!”; e finalmente a batida direta, de frente, em uma árvore, sem frear…

Felizmente (para mim, não para a árvore), ela era fraquinha e voou, batendo no teto do carro, que parou logo adiante. Fiquei sóbrio na hora. Veio a polícia rodoviária, que ajudou a tirar o carro da pista e a chamar o reboque. Eu e o Plínio, que nem estávamos na estrada certa para voltar para o Rio, voltamos no carro do reboque. Entrei em casa na manhã de domingo, morrendo de vergonha, e falei muito sério pra minha mãe que tinha dormido no volante (mas desconfio que ela sabia que eu tinha voltado de uma viagem insana).

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Haroun e o Mar de Histórias, de Salman Hushdie

Em Alefbey havia uma cidade tão triste, tão triste – que seus moradores tinham esquecido até o nome dela. A principal atividade econômica da cidade era fabricar tristeza, produto de grande demanda no mundo inteiro. Mas nessa cidade triste vivia Haroun, um menino feliz de 12 anos. Seu pai era o contador de histórias Rashid, conhecido como o Mar de Ideias, ou o Xá do Blá-blá-blá. E sua mãe, Soraya, cantava canções que voavam pelo ar. 

Foi então que alguma coisa deu errado. (Quem sabe a tristeza da cidade acabou penetrando pelas janelas da casa?) A mãe de Haroun fugiu com o vizinho, o Sr. Sengupta, e o pai não consegue mais contar histórias.

Haroun e o mar de histórias, de Salman Rushdie,  é um livro encantado para crianças de todas as idades. A aventura começa e se desenvolve em torno de uma pergunta incômoda para Haroun, o filho do contador de histórias: “E para que servem essas histórias que nem sequer são verdade?” Foi essa pergunta que Haroun ouviu o Sr. Sengupta, o vizinho, fazer a sua mãe.

Haroun não gostava nem um pouquinho do Sr. Sengupta, um homem que odiava histórias e contadores de histórias, mas não conseguia tirar a terrível pergunta da cabeça. E quando sua mãe Soraya fugiu de casa com o Sr. Sengupta, deixando um bilhete em que acusava o marido de viver no mundo do faz-de-conta, Haroun perdeu a calma e gritou com seu pai: "Pra que serve tudo isso? Pra que servem essas histórias que nem sequer são verdade?"

Haroun queria pegar suas palavras de volta, arrancá-las de dentro do ouvido do pai e enfiá-las de volta na sua própria boca; mas naturalmente isto era impossível. E foi por isso que pôs a culpa em si mesmo quando, logo depois, nas circunstâncias mais constrangedoras que se possa imaginar, aconteceu Algo Impensável: Rashid Khalifa, o fabuloso Mar de Ideias, o lendário Xá do Blá-blá-blá, postou-se diante de um vasto público, abriu a boca, e descobriu que não tinha mais histórias para contar.

Rashid não sabia dizer para que serviam as histórias que contava. Mas Kattam-Shud, o líder dos Tchupwalas, o Mestre do Culto de Bezaban, sabia muito bem por que estava envenenando o mar de histórias, por que queria colocar uma rolha na fonte de histórias e parar o interminável fluxo de fios de histórias: as histórias são divertidas, fazem as pessoas imaginar.

“O mundo, porém, não é feito para ninguém se Divertir”, respondeu Khattam-Shud. “O mundo é para se Controlar.” 

Haroun e o mar de histórias conta a aventura de Haroun em Kahani, a segunda Lua da Terra, para recuperar o dom de contar histórias do seu pai. Lembra Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, pelo humor, pela aventura de uma criança em um lugar fabuloso, e pelas brincadeiras com a linguagem e com a lógica.


Minha pequena defesa das grandes histórias

O rebaixamento, ou mesmo o fim das histórias, nem sempre é imposto por uma ditadura. Às vezes uma pessoa, ao ficar adulta, não quer saber mais de histórias, de ficções, pois tem muito o que fazer, muito o que conquistar, muitas batalhas importantes e sérias; não pode se distrair com essas histórias que nem sequer são de verdade. Gerações quase inteiras se entregam a um pragmatismo insosso.  Modificam as histórias existentes para transformá-las em lições de moral para as crianças. Os adultos, pelo menos os normais, que têm uma tarefa importante a cumprir, não devem perder tempo com esses contos da carochinha. 

Eu, de minha parte, pelo menos agora, com 43 anos, não conheço nada mais real e importante para os seres humanos de todas as idades do que as histórias. Durante todo o ensino deveria haver muito tempo para ler e contar histórias, para reinventar as histórias, de modo livre, sem contextualização, sem teorização, sem enchê-las de informação até ficarem chatas. Principalmente nas universidades há urgência de literatura. Que tristes profissionais sem imaginação formaremos sem as histórias? Também os pais, as mães, os políticos, os engenheiros, os advogados, os médicos, todos deveriam ser obrigados a ler livros de histórias. A quem me falasse que isso seria uma loucura, que este mundo das histórias não é o mundo real, eu responderia como Tagarela, uma Pagem-Página da Guarda Real da Cidade de Gup: 

- Ah, não é real, este mundo das histórias? Esse é o problema de vocês, que vêm dessas cidades tristes: na opinião de vocês um lugar tem de ser horroroso e insosso como água da pia pra vocês acreditarem que é real.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Quando fui outro, de Fernando Pessoa (antologia organizada por Luiz Ruffato)

Fernando Pessoa foi um dos meus ídolos da juventude. Deitava com o livro verde que reunia sua obra poética e ali fazia minha pescaria. Entre tantos poemas que não entendia, não me diziam e os devolvia quase intactos ao livro, de repente saltava do livro aquele poema que se tornava eu. Poemas que passavam a ser meus, pois expressavam a sede de viver plenamente, e a decepção de não consegui-lo. Expressavam a beleza e a dor encontrada em tudo que há e passa. Expressavam forças em revoada, entre o querer e o ver, entre o buscar e o olhar, entre o ânimo e o desânimo. 

Do mesmo modo, em forma de pescaria, seguindo critérios do coração em meio à gigantesca produção do poeta, Luiz Ruffato compôs a bela antologia Quando fui outro, Editora Objetiva/Alfaguara. Um livro para apaixonados, que reúne poemas que foram meus na juventude, tantas vezes lidos, e outros textos, que se não os peguei, foi porque não os encontrei em minhas pescarias solitárias. Um livro para manter na cabeceira e reler pela vida afora, para não me perder do jovem que fui.

Os poemas em prosa e em verso de Fernando Pessoa não encontram leitores, mas almas gêmeas angustiadas pelo abismo entre o que sentem e o que fazem, e que acham ridícula esta angústia e o sentir-se assim.

Entre tantos poemas desta coletânea, me espantou o fato de ver estampado na página 191 o trecho que mais me tocou (não sei por que) quando li o Livro do Desassossego, e que jamais esqueci. Encontrar ali este pequeno texto deu-me a intuição de que o critério utilizado nesta coletânea de Pessoa é semelhante ao que eu utilizava em minhas pescarias na juventude. Com a palavra, Fernando Pessoa, ou Bernardo Soares:

Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.

Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e pela lembrança. “Morreu ontem”, respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.

Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que eu via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.

O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um “o que será dele?”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.


Não deixe de visitar o livro neste link do google livros

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Comer, Rezar, Amar

Ontem fui assistir ao filme Comer, Rezar, Amar. Não gostei muito; desconfio que o livro seja bem melhor. O que me chamou a atenção foi que o filme termina com a palavra travessia, em italiano (attraversare) e em inglês (cross over). A narrativa de Riobaldo no livro Grande Sertão: Veredas também se encerra com esta palavra, em um sentido muito próximo ao recebido em Comer, Rezar, Amar.

Riobaldo e Liz contam suas histórias com o objetivo de explorar os mistérios da vida, e terminam por escolher travessia como palavra símbolo. Gostamos, ou melhor, nos apegamos à margem, ao porto em que estamos, porque nos dá segurança. Mas não queremos ficar, desejamos partir, nos lançar no mar ou rio perigoso, atravessar até outro lugar, uma margem distante que mal conseguimos enxergar. O que nos mantém onde estamos é o medo. Até que a vontade supera o medo na coragem de partir. Mas nunca chegamos a este outro lugar desejado, chegamos sempre a lugares inesperados. A vida na realidade acontece neste movimento de busca, na travessia.

Travessia também é o título de uma música do Milton Nascimento e do Fernando Brant; mas neste caso sei que foi uma homenagem a Guimarães Rosa, segundo o relatado no excelente Sonhos Não Envelhecem, de Márcio Borges. Será que o livro Comer, Rezar, Amar também termina com a palavra travessia? Será coincidência ou uma referência ao livro de Guimarães Rosa? Qual será a última palavra da tradução italiana e da inglesa de Grande Sertão: Veredas?

Não deixe de visitar o livro Comer, Rezar, Amar no link do Google Livros

Diálogo

O homem chegou ao Céu e foi logo abordando Deus:
- Pai, qual é meu lugar aqui no Céu? Eu sofri à beça lá na Terra.
- Meu filho, não há nada aqui. A vida na Terra foi meu presente pra vocês. Não era um meio para ir a outro lugar. Não era um teste. A vida era o fim.
- Como assim, e todo este sofrimento?
- Não consegui fazer nada melhor. Há sofrimentos inevitáveis e até importantes. Há outros evitáveis, e vocês conseguiram criar maneiras muito boas de aliviá-los. Mas há ainda sofrimentos que vocês criaram com essa mania de achar que a vida é um meio para alcançar o paraíso aqui no Céu ou mesmo na Terra. Vocês pisaram na vida para chegar a um lugar que não existe.
- Mas eu não fiz nada...
- É verdade, você é daqueles que não fazem nada. Acreditou tão profundamente que a vida deve ser um meio para algo maior, que ficou paralisado. Só faria alguma coisa se tivesse certeza que daria bons resultados; e como não se pode ter certeza disso, não fazia nada. Foi fazendo o que os outros pediam, pois assim pelo menos servia a vontades alheias... mas os outros não pediam muitas coisas, e o que pediam não lhe interessava. É, você jogou sua vida fora por que não acreditou nela.
- Ai meu Deus... Posso voltar? Me dá mais uma chance?
- Não.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Em busca de sentido, de Viktor Emil Frankl

“No entanto se move”

O astrônomo Copérnico (1473 – 1543), ao estudar o movimento dos astros, não ficou satisfeito com o geocentrismo – a suposição (tida como saber certo na sua época) de que a Terra permanece imóvel no centro do mundo, com todos os outros astros girando ao seu redor. Por isso, elaborou sua astronomia com base na hipótese heliocêntrica de Aristarco de Samos (sec. III AC), em que o Sol é uma estrela fixa em torno da qual a Terra e os demais planetas giram. 

Viktor Emil Frankl elaborou sua psicologia em uma época dominada pela psicanálise de Freud, em que o homem era visto como um ser determinado por impulsos instintivos, como uma máquina, um autômato. Qualquer formação do eu, qualquer personalidade, era considerada o resultado de um sistema de repressões e sublimações dos impulsos. Sem negar a realidade dos impulsos, Frankl postulou a existência de um núcleo espiritual autêntico em cada ser humano (que transita pelo inconsciente e pelo consciente), capaz de decidir com certo grau de liberdade qual resposta será dada aos impulsos internos e à situação externa presentes.

E qual a relação entre a teoria psicológica de Frankl e a revolução de Copérnico? Esta é uma bela alegoria daquela. Ao contrário do que pensávamos, a Terra não fica parada implorando diariamente para que o Sol venha lhe trazer a luz. O Sol fica parado. É ela, a Terra, quem gira, rodopia e rebola, fabricando assim o dia, a noite e as estações. Esta revolução do pensamento em busca da verdade ficou conhecida como revolução copernicana. Pode também ser chamada de revolução copernicana qualquer mudança radical no ponto de vista até então dado como certo.


A passagem da psicanálise (ou qualquer outra psicologia cientificista) a uma psicologia existencialista é semelhante ao amadurecimento do homem. Quando o homem cresce, supõe-se que ele deixe de se ver como um bebê. O bebê não pode fazer mais do que berrar e sorrir diante do que lhe é dado pelo mundo que se movimenta a sua volta, ao passo que até uma criança pode começar a agir de forma ativa e responsável diante do mundo que se lhe apresenta.

“O que se faz necessário aqui é uma viravolta em toda a colocação da pergunta pelo sentido da vida. Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós. Falando em termos filosóficos, poder-se-ia dizer que se trata de fazer uma revolução copernicana. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora – perguntas que precisamos responder, dando a resposta adequada não através de elucubrações ou discursos, mas apenas através da ação, através da conduta correta. Em última análise, viver não significa outra coisa se não arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento.”

A psicologia de Viktor E. Frankl altera radicalmente a posição do sujeito em relação à vida. O mais importante não é o quanto de prazer ou sofrimento a vida nos dará, mas qual a atitude, quais tarefas vou assumir diante da vida que está aí, com seus sofrimentos e prazeres. Na realidade, o sujeito deixa de ser objeto e é reconhecido como sujeito.

Quem quiser conhecer melhor a vida e a teoria de Victor Emil Frankl deve ler o livro Em busca de sentido. O livro é composto de duas partes. A primeira parte narra a experiência do autor nos 4 anos (de 1941 a 1945) em que viveu em campos de concentração nazistas, tendo sido escrita poucos anos depois de sua libertação. A segunda parte faz um resumo de sua teoria psicológica, a que deu o nome de logoterapia. Há ainda uma conferência (A tese do otimismo trágico) em complemento à segunda parte.

"O ser humano não é uma coisa entre outras; coisas se determinam mutualmente, mas o ser humano, em última análise, se determina a si mesmo. Aquilo que ele se torna – dentro dos limites dos seus dons e do meio ambiente – é ele que faz de si mesmo. No campo de concentração, por exemplo, nesse laboratório vivo e campo de testes que ele foi, observamos e testemunhamos alguns dos nossos companheiros se portarem como porcos, ao passo que outros agiram como se fossem santos. O ser humano tem dentro de si ambas as potencialidades; qual será concretizada depende de decisões e não de condições.
Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele também é aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-Nosso ou o Shemá Yisrael."

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Teoria da Conspiração


De acordo com a teoria da conspiração, todo mal deve ser atribuído a um culpado que deseja esse mal e conspira para sua permanência. O culpado pode ser uma pessoa, grupo, raça, instituição, país, religião... O próximo passo é planejar a eliminação do culpado, o que misteriosamente resolveria o problema, pois por trás da teoria da conspiração repousa a crença numa ordem natural pura e feliz que foi corrompida pelos conspiradores. Porque a teoria da conspiração está incorporada ao nosso modo de pensar, porque leva à intolerância e à violência, porque suas soluções falsas para os problemas geralmente pioram a situação; por tudo isso resolvi fazer um post sobre a teoria da conspiração. Mas como o filósofo Karl Popper já tratou do assunto, e sua crítica da teoria da conspiração aponta para a importante tarefa de observarmos as consequências não intencionais de nossos atos, limito-me a reproduzir o trecho do livro “Em busca de um mundo melhor” que trata da teoria da conspiração:

“Há uma concepção filosófica da vida que é muito influente e segundo a qual alguém tem de ser responsável quando algo ruim (ou algo extremamente indesejável) acontece neste mundo: alguém deve tê-lo feito, e intencionalmente. Essa concepção é bastante antiga. Em Homero, o ciúme e a ira dos deuses são responsáveis pela maioria dos eventos terríveis que ocorreram antes de Tróia e na própria cidade; e Posídon foi o responsável pelos errores de Odisseu. Mais tarde, no pensamento cristão, o Diabo é responsável pelo mal. E no marxismo vulgar é a conspiração de capitalistas gananciosos que impede a chegada do socialismo e o estabelecimento do reino dos céus na terra.

A teoria de que a guerra, a pobreza e o desemprego são as conseqüências de más intenções e planos sinistros é parte do senso comum, mas é não-crítica. A essa teoria não-crítica do senso comum dei o nome de teoria da conspiração da sociedade. (Também se poderia falar de teoria da conspiração do mundo: basta pensar no Zeus lançador de raios.) A teoria é muito difundida e, como busca por um bode expiatório, provocou perseguições e sofrimentos horríveis.

Um traço importante da teoria da conspiração da sociedade é que ela instiga conspirações reais. Mas um exame crítico mostra que conspirações dificilmente chegam a atingir seu objetivo. Lênin, que defendia a teoria da conspiração, foi um conspirador; como também Mussoline e Hitler. Mas os objetivos de Lênin não foram realizados na Rússia; tampouco os de Mussoline ou Hitler foram realizados na Itália ou na Alemanha.

Todos foram conspiradores porque acreditaram acriticamente numa teoria da conspiração da sociedade.
É uma contribuição modesta, mas talvez não de todo insignificante para a filosofia, chamar a atenção para os erros da teoria da conspiração da sociedade. Além disso, essa contribuição leva à descoberta do grande significado de conseqüências não-intencionais das ações humanas para a sociedade, como também à proposta de ver a tarefa das ciências sociais teóricas na explicação de fenômenos sociais como conseqüências não-intencionais de nossas ações.”

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Reforma ortográfica para brasileiros em 5 lições

Você está estudando para fazer prova de português? Você costuma escrever apazigue, oblique ou averigue, e ainda por cima com acento? Você usa o hífen com segurança?

Se você respondeu negativamente às perguntas acima, e quiser seguir o novo acordo ortográfico (que só será obrigatório a partir de 2013), basta aprender as cinco pequenas lições abaixo. Você verá que na prática seguir o Acordo significa deixar de usar o trema e alguns acentos:

1ª lição: Esqueça o trema. Mas se você estiver escrevendo uma palavra estrangeira ou uma carta para a Gisele, é educado usar o trema; portanto, Bündchen.

2ª lição: Esqueça o ôo e o êem. Portanto: Zoo, Eu enjoo no voo, eles leem e creem.

3ª lição: Não esqueça o éi e o ói (ói nóis aqui travez). Só caíram os acentos no ói e éi das paroxítonas. Portanto: Tive uma ideia heroica, mas não recebi o troféu de herói no céu.

4ª lição: Foram embora os acentos no i e no u fortes que vêm depois de ditongo nas paroxítonas. Mas outros acentos em i e u permanecem, como nos hiatos (não precedidos de ditongos) e nas oxítonas precedidas de ditongo. Portanto: baiuca, feiura, cheiinha; mas Piauí, construído, poluído, tuiuiú.

5ª lição: caíram os acentos diferenciais dos homógrafos, exceto pôde (ele pôde), pôr (pôr do sol), e fôrma (opcional: bota o pé na fôrma/forma), que continuam iguais. Mas calma, as únicas palavras que eu conheço que perderam o acento diferencial foram: para (do verbo parar), pera, pelo e polo (Polo Sul/Norte).

"Ah, para! Só preciso guardar essas cinco liçõezinhas para escrever de acordo com a nova ortografia? Não tem mais nada?"

Tem uma porção de outras mudanças, mas em detalhes que a gente já não sabia antes do acordo. Se você quiser, pode pesquisar esses outros detalhes por diversão, distração, profissão ou autoflagelamento (essa procurei no dicionário), mas eles não são importantes para o brasileiro bem educado escrever de acordo com a nova ortografia.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Pergunta

Posso saber com certeza, ou todo o conhecimento são opiniões, e só posso melhorar o conhecimento deixando as opiniões sempre abertas a críticas e testes?

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Apologia de Sócrates, de Platão, e Em busca de um mundo melhor, de Karl Popper

Em 399 AC, aos 70 anos, Sócrates afirma em seu julgamento que a única sabedoria que possui é a consciência da própria ignorância. A idéia central da Apologia de Sócrates, de Platão, é que a autoridade não é critério de verdade, e que as afirmativas dos que se julgam sábios não passam de opiniões, muitas vezes opiniões que não se sustentam diante de algumas perguntas. O problema na pretensa sabedoria é que ela se fecha à critica, e com isso normalmente seus preceitos se deterioram. Sabedoria  então deve ser a consciência de não possuir qualquer sabedoria. Mas não é só isso. Também atravessa toda a defesa de Sócrates a hipótese de que podemos chegar a opiniões melhores, e portanto nos aproximarmos da verdade, se formos submetidos à investigação crítica. A maior tolice, portanto, que os cidadãos de Atenas poderiam fazer era condenar Sócrates ao exílio, ao silêncio ou à morte, pois sua vida era dedicada a fazer-lhes um bem, censurando-os e testando suas opiniões. No tribunal, Sócrates adverte seus juízes: “Se vocês me matarem, passarão o resto de suas vidas em sonolência, a menos que o Deus, no seu zelo, envie alguém mais para os aguilhoar”. 

Em 1984, aos 82 anos, Karl Popper reuniu, por meio de uma coleção de conferências, suas opiniões sobre conhecimento, política e ética em um livro chamado Em busca de um mundo melhor. As ideias que impulsionaram toda a sua filosofia já estavam presentes na Apologia de Sócrates, não sendo por acaso que Popper considere a Apologia o mais belo escrito filosófico que ele conhece. Popper, como o Sócrates da Apologia, acredita que não há realmente sabedoria, mas apenas opiniões, tentativas falíveis de solucionar problemas na busca por um mundo melhor. Inclusive todo o conhecimento científico é uma coleção de opiniões. Não há prova na ciência, não há certeza em suas teorias. Se a ciência chegou a resultados fantásticos, a opiniões muito boas, isto se deve ao fato de que o método do conhecimento científico é o método crítico: o método da busca de erros e da eliminação de erros a serviço da busca da verdade.

Em seu livro mais conhecido, A sociedade aberta e seus inimigos, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, Karl Popper disseca a história do autoritarismo e faz uma defesa vigorosa da democracia. Na filosofia, Popper é reconhecido principalmente por sua contribuição à filosofia da ciência, que ficou conhecida como falsificabilidade. Popper defende que a ciência não tem um método próprio para chegar às suas teorias, quer dedutivo ou indutivo. Não interessa a fonte da teoria científica, ou seja, como se chegou à formulação da teoria (intuição, criatividade, crença popular, sonho, observação, dedução, etc). A característica do método científico é colocar as teorias sob ataque, não para confirmá-las, mas para tentar falsificá-las, provar que estão erradas. A cada teoria falsificada, o entendimento sobre o assunto aumenta e há a necessidade de elaborar novas teorias.

A semelhança entre o método científico descrito por Popper e o comportamento de Sócrates diante do oráculo de Delfos é evidente. O oráculo havia dito que “Sócrates é o mais sábio entre os homens”. Como Sócrates estava consciente de que não possuía nenhuma sabedoria, procurou mostrar que o oráculo havia se enganado, interrogando um individuo que gozava a reputação de ser sábio. Depois de conversar com esse homem, um político, viu que ele se julgava sábio, mas não era. Sócrates concluiu então que provavelmente era mais sábio do que aquele homem, na modesta medida que não julgava saber de coisas que não conhecia. Assim, seguiu interrogando poetas, trágicos, artesãos para demonstrar de forma efetiva ser menos sábio que eles. Os resultados dessa investigação levaram Sócrates a uma nova hipótese, a de que o oráculo não estava falando nada sobre Sócrates, mas usando-o como exemplo para dizer: “É entre vós, ó seres humanos, mais sábio aquele que, como Sócrates, reconhece que na realidade não possui nenhuma sabedoria”. E mesmo esta nova teoria, Sócrates nunca a tem como certa: “...prossigo ainda nessa busca, investigando, segundo o comando do Deus, todo indivíduo, cidadão ou estrangeiro, que julgo ser sábio”.

As conferências reunidas no livro de Karl Popper tratam de vários assuntos referentes a nossa história recente de uma forma muito clara, como é obrigação de um filósofo que quer oferecer opiniões (e também refutações de opiniões correntes) para o exame crítico, para a busca de erros, para o teste do leitor. Mas a lição central, de humildade intelectual e respeito à opinião dos outros, é uma lição perene, que nunca vai envelhecer e nunca vai perder importância. Quase todos nós concordamos com Sócrates quando se trata da opinião dos outros, mas em relação à nossa opinião ou à opinião da qual somos partidários, confundimos certeza subjetiva com prova objetiva, e somos assassinos de Sócrates. Não aceitamos que temos opiniões, como os outros, mas julgamos ter certezas incontestáveis que precisam ser impostas de qualquer maneira para o bem geral. Basta dizer que o mesmo Platão que escreveu a Apologia de Sócrates, defendeu em outros livros (A República e As Leis) um sistema político que sabe tudo e não tolera qualquer crítica ou crítico.

Em busca de um mundo melhor

O título do livro não é em busca do mundo ideal, do melhor mundo ou do mundo perfeito. Não devemos desistir de buscar um mundo melhor, tanto na nossa vida privada como pública. Seria como desistir da vida. Mas precisamos da humildade, tão difícil, de reconhecer que somos seres falíveis e, além disso, não podemos prever todas as consequências de nossos atos. Constantemente erramos, nossa busca por um mundo melhor piora o mundo. O único jeito é sempre, e para sempre, submeter nossas ideias e  ações à crítica racional.

Popper: “... Com nossa linguagem, nossa ciência e nossa técnica podemos prever as consequências futuras de nossos sonhos, desejos e invenções melhor do que as plantas e os animais, mas não muito melhor. É importante percebermos quão pouco sabemos sobre essas consequências imprevisíveis de nossas ações. Os melhores meios que estão a nossa disposição continuam sendo tentativa e erro: tentativas que muitas vezes são perigosas e erros ainda mais perigosos – às vezes perigosos para a humanidade.

A crença numa utopia política representa um perigo especial. Isso possivelmente está ligado ao fato de que a busca por um mundo melhor é (se estou certo), similarmente à investigação do nosso entorno, um dos mais antigos e importantes instintos de vida. Acreditamos, com razão, que podemos e devemos contribuir para a melhora de nosso mundo. Mas não podemos imaginar que somos capazes de prever as consequências de nossos planos e ações. Sobretudo, não devemos sacrificar nenhuma vida humana (a não ser talvez a nossa própria, em caso extremo). Também não temos nenhum direito de motivar os outros, nem mesmo tentar convencê-los, a se sacrificar – nem mesmo por uma ideia, uma teoria, que nos tenha persuadido por completo (provavelmente sem razão, por causa de nossa ignorância).

Em todo caso, uma parte de nossa busca por um mundo melhor deve consistir em buscar um mundo tal em que os outros não precisem sacrificar sua vida involuntariamente por uma ideia.”

Titãs: “Nenhuma ideia vale uma vida.”

Apologia de Sócrates

Na Apologia,  Sócrates apresenta suas ideias com clareza e bom humor. Mas o leitor fica cheio de dúvidas a respeito deste julgamento: Que julgamento é este? Que acusação esquisita é esta? Por que Sócrates se defende deste jeito? Por que ele é condenado?

Saber sobre os antecedentes do julgamento ajuda a responder essas perguntas. Reproduzo abaixo partes do livro A Sociedade Aberta e Seus Inimigos em que Karl Popper relata esses acontecimentos e dá sua versão para o julgamento de Sócrates. Ainda que essa versão possa ser contestada, e haja controvérsias sobre quais eram as ideias de Sócrates e quais as de Platão, e se as deste realmente se distanciaram das daquele. Ainda assim, como leitor não tenho dúvida de que a versão abaixo ajuda a entender o livro Apologia de Sócrates e seu livro irmão, Críton:

“Atenas se envolveu em quase trinta anos de guerra contra Esparta (de 431 AC a 404 AC). Ao final, Atenas caiu e suas muralhas foram destruídas. A principal responsabilidade pela perda da guerra recai sobre os oligarcas traidores que continuamente conspiraram com Esparta. Entre eles se destacaram três antigos discípulos de Sócrates: Alcibíades, Crítias e Cármides. Depois da queda de Atenas, os dois últimos tornaram-se líderes dos Trinta Tiranos, que não passavam de um governo títere sob proteção espartana. Crítias, por esse tempo, mandava matar dezenas e dezenas de cidadãos de Atenas; durante os oito meses de seu reinado de terror, o número de atenienses mortos era quase maior do que o de mortos durante os últimos dez anos da Guerra do Peloponeso. Mas os democratas continuaram a lutar. Com uma força a princípio de apenas setenta, prepararam, sob a direção de Trasíbulo e Anito, a libertação de Atenas. Crítias e a guarnição espartana foram atacados e derrotados pelos democratas, que se estabeleceram no Pireu, e Crítias e Cármides, ambos tios de Platão, perderam a vida na batalha. Seus seguidores oligárquicos continuaram por certo tempo com o reinado do terror na cidade de Atenas, mas suas forças estavam em estado de confusão e dissolução. Havendo-se demonstrado incapazes de governar, foram finalmente abandonados por seus protetores espartanos, que concluíram um tratado com os democratas. 

Logo que a democracia restaurada reestabelecera normais condições legais, foi iniciado um processo contra Sócrates. Sua significação era bastante clara; ele era acusado de haver tido influência na educação dos mais perniciosos inimigos do Estado: Alcibíades, Crítias e Cármides. Certas dificuldades para a acusação foram criadas por uma anistia concedida a todos os crimes políticos cometidos antes do reestabelecimento da democracia. O libelo não podia, portanto, referir-se abertamente àqueles casos notórios. E os acusadores provavelmente não procuravam tanto castigar Sócrates pelos infelizes acontecimentos do passado, que, como eles bem sabiam, haviam ocorrido contra as suas intenções. O objetivo principal dos acusadores era impedir Sócrates de continuar com seus ensinamentos, os quais, em vista dos efeitos, não podiam deixar de ser considerados como perigosos ao Estado democrático. Por esses motivos, foi dada à acusação a forma vaga e mesmo sem significação de que Sócrates estava corrompendo a juventude, de que era ímpio e de que tentara introduzir no Estado novas práticas religiosas. (Estas duas últimas afirmações sem dúvida manifestavam, embora toscamente, o sentimento correto de que, no campo ético-religioso, ele era um revolucionário). Em razão da anistia, a “juventude corrompida” não podia ser precisamente citada, mas todos sabiam, sem dúvida, de quem se falava.  Em sua defesa, Sócrates insistiu em que não tinha simpatia pela política dos Trinta e em que realmente arriscara a vida ao desafiar uma tentativa do governo de implicá-lo em um de seus crimes. E lembrou ao tribunal que entre seus mais íntimos companheiros e mais entusiásticos discípulos havia pelo menos um ardente democrata, Querofonte, que lutara contra os Trinta.

É hoje conhecido que Anito, o dirigente democrático que apoiou a acusação, não pretendia fazer de Sócrates um mártir. O alvo era exilá-lo. Mas esse plano foi derrotado pela recusa de Sócrates em transigir com seus princípios. Não creio que ele quisesse morrer, ou que lhe agradasse o papel de mártir. Ele simplesmente lutou por aquilo que acreditava ser certo. Nunca pretendera minar a democracia. De fato, tentara dar-lhe a fé que era necessária. Fora esta a tarefa de sua existência. E ela estava, sentia ele, seriamente ameaçada. A traição a Atenas levada a cabo por seus antigos companheiros deixara sua obra e ele mesmo aparecerem a uma luz que o deve ter perturbado profundamente. É possível que tenha até saudado o julgamento como uma oportunidade para provar que sua lealdade à cidade era sem limites.

Sócrates explicou esta atitude com a máxima minúcia quando lhe foi dada uma oportunidade de fuga. Se a tivesse aproveitado, exilando-se, todos o teriam julgado um inimigo da democracia. Assim, permaneceu e expôs suas razões. Esta explanação pode ser encontrada no Críton, de Platão. É simples. Se eu partir, diz Sócrates, violarei as leis do Estado democrático. Tal ato me colocaria em oposição às leis de Atenas e provaria minha deslealdade. Prejudicaria o Estado. Somente permanecendo posso mostrar, fora de dúvida, minha lealdade para com Atenas e suas leis democráticas, e provar que nunca fui seu inimigo.

A morte de Sócrates é a derradeira prova de sua sinceridade. Mostrou ele que um homem podia morrer não só pelo destino, pela fama ou por outras grandes coisas desta espécie, mas também pela liberdade do pensamento crítico e por um respeito de si mesmo que nada tem a ver com auto-importância ou sentimentalismo.”


Em Tempo


As críticas também são opiniões, também são falíveis e só podem melhorar se também se abrirem à crítica.

sábado, 18 de setembro de 2010

Viaje na viagem dos livros

Encontrei o Ricardo Freire ontem à noite no boteco Mercearia do Lili, aqui em Belo Horizonte. Eu e mais umas quarenta pessoas estávamos lá, na agradável área vip do boteco, com uma bela vista de Beagá, atendendo ao chamado do criador do blog Viaje na Viagem. Todos fans do Ricardo Freire, pois além de comprovarmos nas poucas viagens que fazemos que as dicas dele são ótimas, viajamos junto com ele pelo mundo nas fotos deslumbrantes e nos textos bem humorados postados no blog.

Lembrando de minhas viagens, de repente tive a nítida impressão de ter estado em lugares em que nunca estive. É que cada livro de literatura que leio me leva diretamente a seus personagens e a seus mundos. Por isso essa sensação de já ter ido à Índia (Filhos da Meia Noite), a Cuba (O Rei de Havana), a Budapeste (Budapeste),  a Moçambique (Terra Sonâmbula) e mesmo a Macondo (Cem Anos de Solidão).

PS: No dia em que escrevi este post, ainda participei de uma maratona de botecos, organizada pelo Guilherme Lopes para mostrar ao Ricardo Freire o que Belo Horizonte tem de melhor. A maratona durou de 15:30 à meia-noite; consta que foram 5 km de caminhada e 7 botecos. Não consegui anotar o nome de todos os bares por que passamos, nem quais os petiscos que provamos. Mas eu estava lá. Felizmente o Ricardo Freire anotou tudo e postou no Viaje na Viagem.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Pobre tradução

Não sou de ficar analisando tradução. Mas não se precisa saber muito inglês nem ler o original para observar certos erros graves. Como na página 26 do livro Invictos, de John Carlin. Está lá: "Sua decisão de entrar no CNA como um homem jovem aos 40 anos; sua liderança desafiadora na campanha contra o apartheid aos 50; (...)" Mais tarde o leitor descobrirá que Mandela entrou no CNA aos 25 anos. Fica claro que o certo seria: "Sua decisão de entrar no CNA como um homem jovem nos anos 40; sua liderança desafiadora na campanha contra o apartheid nos 50; (...)". Um erro grosseiro como esse abala a confiança do leitor. Pena que a edição brasileira não tenha o capricho que o livro merece.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Invictus, de John Carlin (o livro)

Há o filme Invictus, de Clint Eastwood, e há o livro Invictus, de John Carlin, no qual o filme se baseia. Não gosto de comparar filmes com livros, dizer que um é melhor que o outro. Mas, nesse caso, acho que a leitura do livro é condição para que o filme possa ser devidamente apreciado. O filme nos lança na África do Sul no significativo período que vai do primeiro dia do mandato de Nelson Mandela como primeiro presidente eleito pelo voto majoritário, em 11 de maio de 1994, até a final da Copa do Mundo de Rúgbi entre o Springboks (seleção da África do Sul) e o All Blacks (seleção da Nova Zelândia), em 24 junho de 1995. O espectador só poderá ter a exata noção da importância e do significado de cada cena exibida na tela se conhecer melhor os personagens envolvidos e a história da África do Sul desde dez anos antes do momento em que o filme inicia. É essa lacuna que o livro preenche. Para se ter uma ideia, apenas na página 164, de um total de 268, o leitor do livro entra no período mostrado no filme.

O livro, lançado em 2008 com o título Playing the enemy, foi escrito pelo jornalista britânico John Carlin, que morou em Johanesburgo de 1989 a 1995, onde foi chefe da sucursal sul-africana do jornal The Independent, de Londres. Nesse período, ele viveu intimamente a história que iria contar 12 anos depois. Entre 2000 e 2007, John Carlin voltou diversas vezes à África do Sul para trabalhos jornalísticos, como a realização de um documentário para a TV sobre Nelson Mandela. Além disso, entrevistou, especialmente para a composição do livro, os principais personagens envolvidos no drama sul-africano.

O resultado é um livro emocionante. Sem perder o foco da narrativa, que é a final da Copa do Mundo de Rúgbi, aprendemos muito sobre a África do Sul e Mandela. Acompanhamos toda a trajetória de Mandela, desde sua entrada no Congresso Nacional Africano aos 25 anos até a sua consagração como presidente de todos os sul-africanos no dia da grande final, aos 76 anos. No livro também conhecemos os principais personagens dos dois lados do apartheid que Mandela uniu para a construção da África do Sul livre, e suas impressões sobre os acontecimentos. Conhecemos os presidentes (P.W. Botha e De Klerk), o ministro da justiça (Kobie Coetze), o chefe da inteligência (Niël Bernard), o alto comandante militar do Estado do apartheid (Constand Viljoen), e também alguns carcereiros da prisão na ilha Robben. Conhecemos sobreviventes do apartheid como Justice Bekebeke, Walter Sisulu e o próprio Mandela, e mártires como Chris Hani e Anthon Lubowski. E, como não poderiam faltar, os dirigentes e jogadores do Springboks, convertidos de símbolos da opressão e do racismo em símbolos de um novo país.

Playing the enemy

O título do livro é Playing the enemy. Mas o que significa este título?

A palavra play tem o sentido de jogar, e o livro é sobre uma partida de rúgbi, mais especificamente sobre a final da Copa do Mundo de Rúgbi de 1995.

A palavra play também tem o sentido de brincar, em oposição a work, trabalhar. O rúgbi permitiu ao presidente brincar, torcer, em meio a um trabalho político estafante que consumia quase todo o seu tempo e a sua energia.

Play também significa peça de teatro, e to play, encenar. Como todo grande líder político, Mandela tinha uma habilidade natural para o teatro, aperfeiçoada pelos anos de prática no palco político.

Deste último significado, encenar, vem o principal sentido do título. Encenar, representar um personagem, é entrar na pele desse personagem, colocar-se na sua posição. Playing the enemy, portanto, significa principalmente “colocar-se no lugar do inimigo”. De modo semelhante, se pode dizer de um pai dedicado, pelo modo como ele age: “He is playing the father”.

A divisão da África do Sul

Na prisão Mandela percebeu que não poderia derrotar o inimigo; o único jeito de libertar o seu povo seria trazer o inimigo para o seu lado. O primeiro passo foi se colocar, sinceramente, no lugar do inimigo, sem nunca deixar de denunciar a perversidade do sistema e esquecer de seu objetivo: derrotar o apartheid, libertar seu povo e transformar a África do Sul em uma democracia. Com seus carcereiros ele pôde aprender a língua africâner, conhecer a história, os valores e os sentimentos de seus inimigos.

Uma das últimas ameaças que Mandela teve que trazer para o seu lado se chamava general Constand Viljoen. Ele era o líder que poderia, se os africâneres não recebessem uma parte de território soberano dentro da África do Sul, unir as milícias africâneres e parte das forças armadas em uma guerra contra a democracia e o governo do Congresso Nacional Africano. No primeiro encontro com o líder do Volksfront, Mandela deu a seguinte resposta a Constand Viljoen sobre as pretensões separatistas:

“Veja bem, general, sei que as forças militares que o senhor pode reunir são poderosas, bem armadas e bem treinadas e que são muito mais poderosas do que as minhas. Militarmente não podemos combatê-las; não podemos vencer. Se, no entanto, vocês declararem guerra, certamente não vencerão, pelo menos não no longo prazo. Porque, em primeiro lugar, a comunidade internacional está totalmente a nosso favor. E, em segundo lugar, somos muitos e vocês não podem matar todos nós. Então, que tipo de vida seu povo terá neste país? Meu povo vai pôr a boca no trombone, a pressão internacional sobre vocês será enorme e este país se tornará um inferno para todos nós. É isso que vocês querem? Não, general, não haverá vencedores se entrarmos em guerra.”
One team, one country

Mandela percorreu o caminho mais simples e eficaz, embora tão difícil (alguns o consideram impossível), para substituir a briga pela conversa, a guerra pela paz: colocar-se no lugar do inimigo, respeitar o inimigo. E foi isso que aconteceu em sua caminhada a partir de 1985 rumo à revolução negociada na África do Sul: ao colocar-se sinceramente no lugar do inimigo, ele conseguia convencer o inimigo a colocar-se no seu lugar. Ao respeitar os africâneres, conseguiu que os africâneres respeitassem os negros.

Simbolicamente, a final da Copa do Mundo de Rúgbi representou a coroação desse processo. Nelson Mandela entrou no Ellis Park com a camisa e o boné do Springboks para cumprimentar os heróis dos africâneres, e a torcida no estádio, uma amostra dos africâneres mais conservadores da África do Sul, cantou o Nkosi Sikelele (o hino da luta negra que foi incorporado ao hino sul-africano), a Shosholoza (canção popular dos negros que virou o hino do time), e gritou Nelson, Nelson. Depois, em todo o país, brancos e negros festejaram juntos a vitória do time de toda a África do Sul, dos rapazes de Mandela.

Israel, Palestina, Índia, Paquistão, Caxemira, Tibete...

No epílogo do livro o autor faz uma reflexão sobre os acontecimentos a partir da distância de 12 anos da final da Copa do Mundo de Rúgbi. Este é o último parágrafo do epílogo:
Se vai ser assim para sempre, não há como saber. O que perdurará é o exemplo de Mandela e aquele lampejo de utopia que seu povo teve do alto da montanha para a qual ele os guiou em 24 de junho de 1995. Quando perguntei a Tutu qual seria o exemplo duradouro daquele dia, ele respondeu: “É simples. Um amigo de Nova York deu a resposta quando me disse: ‘Sabe, o mais importante de tudo de bom que aconteceu é que pode acontecer de novo.’ Simples assim.”
Há a esperança de que possa acontecer de novo em outros países da África, da Ásia, do Oriente Médio e da Europa. Países onde há uma fenda dividindo povos de raça, tribo, religião, língua e sei lá mais o que diferente. Fenda que em parte foi aprofundada pela crença dogmática na autodeterminação dos povos, que fez com que diplomatas bem intencionados entendessem que criar um país para cada povo, riscando fronteiras nos mapas, seria uma boa solução para os conflitos. Fenda que os radicais dos dois lados, incapacitados de se colocar no lugar do outro, continuam cavando. 

Karl Popper e a autodeterminação dos povos

Em 1956, em conferência reproduzida no livro Conjecturas e Refutações, o filósofo Karl Popper criticou o conceito de autodeterminação dos povos (ou nações), nos seguintes termos:
... O absurdo do princípio da autodeterminação das nações deve aparecer claramente a quem dedicar um minuto a criticá-lo: ele equivale à exigência de que cada Estado seja um Estado nacional: que se limite à fronteira natural, coincidindo com a localização de um grupo étnico: assim, é o grupo étnico, a "nação", que determinará e protegerá os limites naturais do Estado.
Contudo, não existem Estados nacionais desse tipo.(...) Os Estados nacionais não existem, simplesmente porque as chamadas "nações" (ou "povos") com que sonham os nacionalistas também não existem. Praticamente não há grupos étnicos homogêneos estabelecidos em países com fronteiras naturais. Em toda a parte encontramos uma mistura de grupos étnicos e linguísticos (os dialetos correspondem muitas vezes a verdadeiras barreiras linguísticas).
A Tchecoslováquia de Masaryk foi fundada com base no princípio da autodeterminação. Logo depois de criada, porém, os eslovacos passaram a exigir, em nome desse mesmo princípio, sua libertação do domínio tcheco, e o país foi por fim destruído pela minoria alemã, também em nome do mesmo princípio. Situações semelhantes surgiram praticamente sempre que se aplicou o princípio da autodeterminação nacional à fixação das fronteiras de um novo Estado - na Irlanda, na Índia, em Israel, na Iugoslávia. Em todos os países há minorias étnicas. Não podemos adotar como um objetivo apropriado "liberá-las" a todas; nosso objetivo deve ser protegê-las. A opressão de grupos nacionais é um grande mal; mas a autodeterminação não representa um remédio aceitável. Além disso, temos na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá e na Suíça exemplos óbvios de Estados que em muitos aspectos violam o princípio da nacionalidade: em vez de ter suas fronteiras determinadas por um grupo estabelecido, cada um desses Estados conseguiu reunir dentro das suas fronteiras uma variedade de grupos étnicos. O problema, portanto, não parece insolúvel.
No entanto, a despeito de todos esses fatos tão evidentes, o princípio da autodeterminação nacional continua a ser aceito amplamente como parte da nossa crença moral. Raramente é contestado. Recentemente um cipriota apelou para esse princípio moral universalmente aceito. De acordo com o seu ponto de vista, os defensores do princípio da nacionalidade defendem os sagrados valores humanos e os direitos naturais do homem (ao que parece, mesmo quando cometem atos de terrorismo contra os compatriotas que não compartilham das mesmas ideias). O fato de que essa carta não mencionava a minoria étnica de Chipre; de que foi publicada pelo jornal; e de que sua doutrina moral não sofreu contestação em toda uma sequência de cartas sobre o assunto - tudo isso contribui para demonstrar minha primeira tese. Parece-me, de fato, que o número de pessoas mortas pela estupidez investida de objetivos morais é maior do que o das que são assassinadas por simples maldade.
A religião nacionalista é poderosa. Muitas pessoas se dispõem a morrer por ela, acreditando com fervor que é moralmente boa e factualmente verdadeira. No entanto, essas pessoas se equivocam tanto quanto seus companheiros comunistas. Poucas crenças criaram mais ódio, crueldade e sofrimento sem sentido do que a fé na santidade do princípio da nacionalidade. Contudo, ainda se acredita amplamente que esse princípio aliviará a opressão nacional. Admito que meu otimismo sofre um certo abalo quando percebo a quase unanimidade com que esse princípio é aceito, ainda hoje, sem hesitação ou dúvida - mesmo por aqueles cujos interesses políticos claramente se opõem a ele. Recuso-me porém a abandonar a esperança de que o absurdo e a crueldade desse alegado princípio moral serão algum dia reconhecidos por todos os homens que pensam.

sábado, 24 de julho de 2010

Uma ideia infeliz

Há quem queira mexer na Constituição do Brasil para escrever a palavra felicidade no seu texto. Mas não a quer no art 5º, como o direito de cada um buscar a felicidade ao seu modo, sob proteção do Estado. Nada disso. A proposta de emenda que corre no Senado é enfiar a felicidade social no art. 6º, como a grande finalidade do Estado.

O que quer que seja felicidade social, sua busca não deve ser a finalidade do Estado. Quem ficaria seguro em um Estado que usa toda sua força na procura da sua própria felicidade. O Estado deve proteger os direitos individuais e elaborar políticas eficientes para garantir a todos os brasileiros os direitos sociais que já constam do artigo 6º: educação, alimentação, moradia, emprego, etc.

E deixe que cada um procure a sua felicidade. Ou não, pois acredito que tem muita gente buscando coisas mais importantes que a felicidade. Como Confúcio, que não procurava a felicidade, mas ser digno de ser feliz. Ou como Vinícius, que procurou o amor a vida inteira, mesmo sabendo de todo sofrimento que viria junto. Ou como Mandela, que passou 30 anos na prisão perseguindo o sonho de uma África do Sul livre do Apartheid. Ou como Sócrates, que preferiu beber cicuta a abdicar do que entendeu ser sua missão: criticar, mesmo os mais poderosos de sua cidade, para que pudessem melhorar.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Invictus, de John Carlin



Entrei na livraria pra espiar. Não queria comprar nada. Já tenho muitos livros, e um vasto programa de leitura que talvez possa cumprir se chegar bem aos noventa anos.

O primeiro livro que me chamou a atenção foi Invictus, de John Carlin. Tinha visto o filme, que narra uma história maravilhosa até então pouco conhecida. Seu lançamento antes da Copa do Mundo de Futebol atraiu de um jeito especial a atenção do público para a Copa e para a África do Sul. O que aconteceu na África do Sul é um exemplo e uma esperança para um mundo que vive tantos conflitos sangrentos comodamente tachados de insolúveis. Um mundo em que a intolerância é um virus presente em todos os lugares, não apenas naqueles em que suas manifestações são mais visíveis e mortais.
Por isso peguei o livro. Também por um motivo particular. O filme Invictos tinha me ensinado a história e me dado a exata noção da importância global daqueles acontecimentos. Mas, estranhamente, não foi um filme arrebatador. Daqueles que devastam todas as camadas do ego e me transportam para o centro dos acontecimentos. Não, assisti Invictos com um certo distanciamento. E o filme foi dirigido por Clint Eastwood, que já provocou aquele efeito arrebatador diversas vezes em mim (Menina de Ouro, Gran Torino, A Troca).

Então abri o livro e comecei a ler a introdução. A emoção foi quase imediata, mesmo em pé em uma livraria o distanciamento não durou até o fim do segundo parágrafo. Logo meus olhos se encheram de lágrimas e assim permaneceram até o fim da introdução. Terminada a introdução, me refiz e trouxe o livro pra ler em casa. Que programa de leitura que nada!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Balanço da Copa do Mundo de Futebol de 2010

Os mal humorados que me perdoem, mas eu adorei esta copa na África, e desconfio que vou gostar mais ainda da próxima, no Brasil. O esmero na organização e a qualidade das transmissões fazem da copa do mundo um espetáculo de beleza imperdível, que aproxima todos os fãs do futebol de cada detalhe dos jogos, dos gols, dos jogadores e das torcidas.

Jabulani e Vuvuzelas
Mesmo não faltando, desde o início da copa, imagens de jogos emocionantes, a bola e as cornetas foram as primeiras grandes estrelas. Muito do seu sucesso se deve ao atrativo dos nomes africanos: Jabulani, Vuvuzela. Mas a Jabulani era, sim, como aliás as bolas das últimas copas, uma bola caprichosa, imprevisível e exigente. Para a próxima copa a Fifa deveria encomendar uma bola mais tradicional e obediente, fácil de controlar. Seu nome? Amélia, é claro. Quanto às vuvuzelas vvvvvvuuu!!! (leia um tratado sobre a vuvuzela postado pelo blog Uma Copa, Dois Mundos clicando aqui

Tecnologia
Dois erros grosseiros de arbitragem nas oitavas de final foram responsáveis por uma substituição inusitada: saem, Vuvuzela e Jabulani; entra, Tecnologia. Em sites, blogs e twiters proliferaram discussões inflamadas contra e a favor do uso dessa senhora, a Tecnologia, nas arbitragens. Não a defendo como salvadora do esporte bretão, que vai muito bem, nem a condeno como capaz de descaracterizá-lo. Talvez, principalmente em consideração aos árbitros, deva ser incluído um juiz auxiliar que veja o jogo pela televisão e oriente o juiz para corrigir erros grosseiros como o gol não marcado para a Inglaterra contra a Alemanha e o gol marcado em impedimento gritante pela Argentina contra o México. Sinceramente, minha opinião é que isso não vai mudar muita coisa no futebol. Culpar os árbitros pelas derrotas é quase tão ridículo quanto culpar a bola ou as cornetas.

Brasil
Fiquei muito triste com a eliminação do Brasil pela Holanda. Sou fã incondicional da Seleção do mesmo modo que sou fã incondicional do Botafogo. Como em quase todas as copas do mundo, o Brasil levou uma ótima seleção, com nossos melhores jogadores muito bem treinados pelo Dunga e pelo Jorginho. Mas a Copa do Mundo é o mais disputado evento do futebol. Ao contrário do que se fala e repete, a Seleção Brasileira não tem obrigação de ser campeã, ou de ficar entre as semifinalistas ou finalistas. Muito menos tem obrigação de jogar bonito. Mesmo jogando melhor (e mais bonito), perdemos nas quartas de final para a Holanda. Isto é futebol. Isto é Copa do Mundo. Em 2014 a copa será no Brasil, e é bom que saibamos que a função do país sede é organizar um grande evento e uma bela festa. A Seleção será, como sempre, uma forte candidata ao título, mas não tem qualquer obrigação em relação a resultados.

Os gols da Seleção Brasileira
Cada um dos nove gols da Seleção Brasileira é uma obra de arte independente. Não foram gols achados por acaso, por insistência e em erros dos adversários. Foram gols esculpidos, em que o apreciador reconhece a assinatura do futebol de classe. Como de costume, também há pelo menos um quase gol memorável: Robinho entorta os tanques holandeses pela esquerda, passa para Luis Fabiano, que toca de calcanhar pra Kaká chutar buscando o ângulo direito; o goleiraço holandês voa para evitar o segundo gol do Brasil.

O Descontrole
Houve sim, por parte de alguns. Basta ver algumas reações do Dunga, do Robinho, do Felipe Melo e do Kaká, não só no jogo contra a Holanda. Mas, claro, não dá pra dizer que o descontrole foi a causa de não termos ganho a Copa. Temos que aceitar que podemos perder, como podemos ganhar. Muitas vezes o descontrole acontece quando entramos em um jogo só aceitando a vitória como resultado. Não se deve confundir garra e vontade de vencer com o desespero para vencer, que tira a concentração do jogo e pode até levar à desistência. Os jogadores e a comissão técnica de qualquer time devem ter em mente que seus jogos não são vistos somente por seus torcedores, mas por milhões de espectadores que não estão interessados em brigas e discussões entre jogadores e juízes.

A Alemanha
Jogo em equipe, talentos individuais, juventude e experiência, excelente goleiro, boa qualidade na defesa, no meio de campo e no ataque, preparo e vontade de vencer, sem querer ganhar a qualquer custo. Esta seleção alemã e suas goleadas encantaram o mundo.

Os Jogaços
Pela emoção, pela qualidade, pelo inusitado, ou por tudo isso junto, listo alguns jogaços da Copa do Mundo. Na fase de grupos: Eslováquia 3 x 2 Itália. Nas oitavas de final: Alemanha 4x1 Inglaterra, Brasil 3x0 Chile. Todos os oito jogos das quartas de final em diante foram jogaços, sendo difícil destacar apenas alguns.

Viva a Espanha!
A primeira Copa do Mundo vencida pela Espanha deu à Copa da África um sabor especial. E a seleção espanhola jogou bonito, com um ótimo goleiro, uma ótima defesa, toque de bola no meio campo e busca incessante do gol e da vitória. Alguns lembrarão que a Espanha ganhou apenas de 1x0 nas oitavas, nas quartas, na semi-final e na final. E quem disse que a vitória por 1x0 não pode ser fantástica? Chega de comparar futebol com basquete! Estes quatro jogos foram dramáticos, com a  Espanha buscando o gol o jogo inteiro e sempre chegando perto, muito perto, sem alcançá-lo, até que... sempre no segundo tempo, inesperadamente, aparecia o gol salvador, provocando uma explosão de alegria. Na final, essa estética atingiu o ápice, com o gol no final da prorrogação, depois de um passe errado do Torres, que era a esperança de gols da Espanha antes da Copa.

terça-feira, 29 de junho de 2010

A história da arte, de Ernst Gombrich

Gostar é um sentimento; não se pode escolher gostar ou não gostar de um quadro, de uma escultura, ou de um prédio. Mas conhecer está ao alcance da nossa vontade. O livro A história da arte é perfeito para quem quer conhecer as idéias e os objetivos que estão por trás das principais obras de arte da nossa história. Seu autor, Ernst Gombrich, escreve de forma simples e cativante, e teve o bom senso de analisar apenas obras que são mostradas ao leitor nas ilustrações.

Como em tudo na vida, conhecer ajuda a descartar hábitos e preconceitos. Ao conhecer melhor essas obras de arte, o gosto do leitor pode sofrer modificações: gostar do que lhe era indiferente; gostar mais do que já gostava; e até gostar, mesmo muito, de obras que mal podia olhar.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Jabulani

As reclamações se justificam. A Jabulani é uma bola melindrosa, rebelde e exigente. Para a copa do mundo de 2014, no Brasil,a FIFA deveria encomendar uma bola mais tradicional e obediente, fácil de controlar. Seu nome? Amélia, é claro.

Para esta copa, no entanto, não será bom nem para jogadores nem para torcedores continuar esta briga com a Jabulani. Os jogadores têm que trazer a Jabulani para o seu lado. Conversar com ela, fazer um carinho, aprender o jeito de tratá-la com firmeza, mas sem magoá-la. E nós, torcedores e admiradores do futebol, podemos rir das jabuladas de quem não se adaptou ao seu temperamento difícil, e admirar os jogadores que venceram o desafio de conquistar (ou domar) a Jabulani. Mesmo nesse início da competição, não faltam jogadas que mostram o espírito guerreiro daqueles que conseguiram transformar a dificuldade em vantagem, se adaptando à nova situação e trazendo a Jabulani para o seu time.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Platão e a Odisseia

A preocupação central de Platão com a virtude e com o estado justo pode muito bem ter tido sua origem na leitura da Odisseia. Afinal, na ausência de Ulisses, “se é que Ulisses existiu”, Ítaca é uma cidade-estado que não protege seus cidadãos. Na viagem de Telêmaco em busca de notícias do pai, ele passa por cidades-estados em que as pessoas são educadas e acolhedoras. Além disso, sempre que Ulisses chega desamparado a uma terra desconhecida, ele se questiona:

“Ai de mim, a que terra de homens mortais chego de novo?
Serão eles homens violentos, selvagens e injustos?
Ou serão dados à hospitalidade e tementes aos deuses?”

Ainda entre os gregos

Livros como a Odisseia e a Ilíada são fantásticos, mas ao mesmo tempo lançam para aqueles que pretendem escrever o desafio de ultrapassá-los. Esse desafio foi enfrentado de modo brilhante na Grécia antiga por Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, com a tragédia, e por Aristófanes, com a comédia. Se os cantos homéricos abarcaram o leque do comportamento humano, os três trágicos, com os recursos do teatro, exploraram a profundidade psicológica dos personagens, aproximando-os dos leitores, independentemente da motivação (cruel, arrogante, ambiciosa, caridosa, corajosa...) de seus atos. E Aristófanes, do qual infelizmente só li uma peça, é o pioneiro na arte de mostrar o homem ao homem fazendo-o rir de si mesmo.

Odisseia, de Homero

A primeira obrigação de quem conta uma história é encantar o leitor ou o ouvinte. A literatura deve agarrar o leitor, arrancá-lo de seu mundo e transportá-lo para o mundo criado pelo livro. Entre os gregos a Odisseia tinha esse poder. A tradução em verso de Frederico Lourenço cumpre plenamente o objetivo, revelado no prefácio, de “devolver ao leitor de língua portuguesa o prazer do texto homérico”. O tradutor acrescenta:
Significa isto que, apesar de vertida do grego e com a máxima fidelidade ao original, não é uma tradução arcaizante nem acadêmica. É uma tradução para ser lida pelo gozo de ler.
Fiel a este propósito, resisti à tentação de salpicar o texto com notas, convicto de que o intuito principal que presidiu à composição da Odisseia foi de enlevar e comover os ouvintes por meio de uma história empolgante, maravilhosamente contada.
Mas a literatura em geral, e a Odisseia em particular, fazem muito mais com o leitor. A literatura tem o poder de salvar o homem. Salvamento que só será possível, aliás, se os dons encantatórios da narrativa forem liberados.

A Odisseia envolve o leitor em uma história que é um vasto painel do comportamento humano. A narrativa está dividida em três partes. Na primeira, encontramos Telêmaco e Penélope, filho e esposa, desamparados pela prolongada ausência de Ulisses, rei de Ítaca. Os arrogantes pretendentes de Penélope se apoderaram do palácio e planejam a morte de Telêmaco. Na segunda parte, a viagem de retorno de Ulisses a Ítaca, o herói ficará progressivamente mais vulnerável conforme vai perdendo seus homens e barcos, até chegar à condição de andarilho solitário. A terceira parte mostra Ulisses de volta à Ítaca e à sua casa, mas na aparência de um velho mendigo. Nas três partes, a ausência de normas estabelecidas libera os personagens para agir de forma arrogante e violenta com os outros, ou, ao contrário, e apesar das dificuldades pessoais, manter-se fiel aos valores de justiça e amor ao próximo.

O leitor pode observar desde personagens extremamente bondosos, como o porqueiro Eumeu e o velho Mentor, até extremamente maldosos, como Antínoo e Eurímaco. Mas também constatará que a maioria atua numa zona intermediária, de variada gradação, como o pretendente Anfínomo, o arauto Médon, o aedo Fêmio, o povo que assiste aos destinos da cidade, e a maioria das serviçais do palácio de Ulisses. Como exemplo dos extremos de comportamento, podemos copiar este trecho, que contrasta o comportamento arrogante do cabreiro Melanteu com o compassivo do vaqueiro Filécio diante do mendigo estrangeiro (na realidade Ulisses disfarçado):

Aproximou-se então Melanteu, o cabreiro de cabras,
trazendo as melhores cabras de todos os rebanhos para
o jantar dos pretendentes; com ele vinham dois pastores.
Atou as cabras debaixo do pórtico ecoante,
e dirigiu-se a Ulisses com palavras insultuosas:

“Estrangeiro, ainda aqui estás, a estorvar dentro de casa,
pedindo esmolas? Não queres sair daqui para fora?
Já estou a ver que não nos despediremos, tu e eu,
sem uns bons murros, pois é de forma desavergonhada
que pedes esmola. Além de que há outros jantares de Aqueus."

Assim falou; mas não lhe deu resposta o astucioso Ulisses.
Abanou a cabeça, com pensamentos terríveis no fundo do coração.

Depois destes chegou um terceiro, Filécio, condutor de homens:
trazia para os pretendentes uma vitela estéril e gordas cabras,
que barqueiros tinham transportado do continente (esses que
também transportam homens, se com eles forem ter).
Atou os animais debaixo do pórtico ecoante,
e aproximou-se do porqueiro com estas palavras:

“Quem é este estrangeiro, ó porqueiro, que chegou há pouco
a nossa casa? De que linhagem de homens declara ele ser
originário? Quem são os parentes? Qual é sua pátria?
Vítima do destino! Na verdade, de corpo parece um rei.
Mas os deuses dão a tristeza àqueles que muito vagueiam,
mesmo fiando para reis o fio da dolorosa desventura.”

Assim dizendo, aproximou-se de Ulisses e deu-lhe a mão.

Mas como a Odisseia pode salvar o homem? Há hoje uma tal descrença na literatura que a maioria julgará essa pergunta uma estultice. Mas eu insisto na minha fé na importância da literatura. Aqui estamos falando de civilidade, de educação. O leitor da Odisseia, justamente por não ser um pretendente, por não ser do povo de Ítaca, por não ser serviçal do palácio de Ulisses, consegue julgar com distanciamento os comportamentos dos personagens. A leitura permite ao leitor sair-se de si, observar o mundo sem as distorções provocadas pelas lentes de seus ódios, rancores, medos e desejos. É possível distinguir o bem e o mal do bom e do mau para si.

Ao fechar o livro e voltar para o nosso mundo, claro que não somos mais leitores. Ainda temos desejos, preferências, sentimentos como ódio, medo, inveja e rancor, e sabemos respeitar em nós estes sentimentos. Mas sabemos reconhecer esses sentimentos como nossos, e não mais tomaremos os julgamentos centrados neles como verdades absolutas, como justificativa para qualquer ato. Alguma prudência fará frente a nossa arrogância. Além disso crescerá dentro de nós um sentimento de admiração e submissão ao bem, que não seja simplesmente o meu bem. E ser educado e civilizado é justamente a capacidade de respeitar o próximo, acima de nossa inclinação mais imediata.

Muitas histórias do Livro das Mil e uma Noites são semelhantes às histórias da Odisseia. Tanto a Odisseia como o Livro das Mil e uma Noites trafegam entre o verossímil e o mágico com uma história de fundo verossímil trazendo as narrativas mágicas por meio de personagens narradores. Mas é a história de fundo do Livro das Mil e uma Noites que mais revela a fé no poder educativo da literatura. Sherazade se oferece como esposa do rei, não para morrer no dia seguinte como as outras esposas, mas para salvar a cidade e mesmo o próprio rei. Ela não espera convencer o rei com argumentos, jamais. Acredita nas histórias maravilhosas que sabe contar. Tal é sua fé no poder educativo de tais histórias que arrisca a sua própria vida. E são histórias encantatórias, envolventes, em que frequentemente encontramos, como na Odisseia, personagens sofredores cruzando tanto com pessoas injustas e perigosas, quanto com pessoas compassivas e solidárias.

sábado, 22 de maio de 2010

Um grande dicionário (Grande Dicionário Sacconi de Língua Portuguesa)

Sem muito alarde, neste ano foi lançado o Grande Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa, que em algumas livrarias disputa lugar com o Aurélio e com o Houaiss; na maioria delas, não sei por que motivo, não o encontrei. O adjetivo grande vem anteposto ao substantivo dicionário, o que indica o uso em sentido conotativo, pois em tamanho o novo dicionário que recebemos não difere muito dos outros. Imagino que esse grande remeta aos versos de Fernando Pessoa: “para ser grande, sê inteiro”. Pois, dentre as inovações trazidas pelo Grande Dicionário, a mais marcante é esta ambição de ser inteiro, de nada exagerar ou excluir.

As qualidades do Grande Dicionário estão relacionadas a outra diferença em relação aos outros dicionários da língua portuguesa. O Aurélio e o Houaiss são dicionários impessoais, guardando o nome em homenagem aos iniciadores do seu trabalho, mas seus verbetes são de responsabilidade de centenas de funcionários anônimos. No entanto, cada um dos 200.000 verbetes do Grande Dicionário Sacconi foram pesquisados, elaborados e atualizados pelo gramático e dicionarista Luiz Antonio Sacconi, que trabalha na obra desde 1983. Continuam ecoando os versos de Fernando Pessoa: “Sê todo em cada coisa./ Põe quanto és no mínimo que fazes”.

Meu Deus! Lá se foram dois parágrafos, e ainda não falei objetivamente de nenhuma qualidade do dicionário; então vamos a algumas:

Estilo - O texto dos verbetes, os comentários e os exemplos têm o estilo do autor, o que torna a leitura agradável.

Inovador - Traz para o dicionário milhares de palavras e acepções de palavras de uso comum no Brasil que não estavam dicionarizadas: mensalão, disponibilizar, pen drive, sapatênis.

Enciclopédico – Há verbetes com informações sobre fatos históricos (Revolta da Chibata, Abolição da Escravatura, Contrarreforma...), sobre literatura (Os Sertões, Guerra e Paz, Iracema...), sobre os estados e capitais do Brasil, sobre todos os países do mundo, etc.

Devido a essas inovações, mais a diagramação em duas colunas e tipos de tamanho adequado, o Grande Dicionário do professor Sacconi diverte, ensina e convida à leitura. Tome como exemplo os verbetes bluetooth, twitter e tweet:

Blue.tooth[ingl. = dente azul] s.m.(o) Tecnologia que permite uma comunicação simples, rápida, segura, barata e sem fio entre aparelhos eletroeletrônicos, como computadores, telefones celulares, escâneres, palmtops, impressoras, smartphones, mouses, teclados, fones de ouvido e outros dispositivos, utilizando, no lugar de cabos, ondas de rádio na frequência de 2.4 GHz, que não necessita de licença e está disponível em quase todo o mundo. 5 Pronuncia-se blu-túç. 2 O nome é uma homenagem a um rei dinamarquês chamado Harald Blåtand, mais conhecido como Harald Bluetooth (Haroldo Dente-Azul, por ele ter dentes azulados), que, no séc. X, unificou os reinos nórdicos da Dinamarca e da Noruega. Portanto, Bluetooth passou a ser sinônimo de unificação.
twit.ter[ingl.] s.m.(o) Informática 1. Rede social e servidor que permite ao usuário enviar e ler atualizações pessoais de outros contatos. 2. Microblog em que amigos ou mesmo pessoas que não se conhecem escrevem textos ou mensagens curtas, revelando o que estão fazendo no momento, alertando para um determinado fato, fazendo sugestões, etc. 5 Pronuncia-se tuítâr. 1 twittar v.t.d. (utilizar o twitter: é proibido twittar no trabalho; qual é a melhor hora para twittar?), que é neologismo.
tweet[ingl.] s.m.(o) Informática Mensagem ou texto de no máximo 140 caracteres. 5 Pl.: tweets. 5 Pronuncia-se tuít.