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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Carnaval

"Sendo deus-vinho, Diôniso é dado a outras divindades e lhe devemos todo o bem que elas nos fazem"
(de As Bacantes, de Eurípides, Jorge Zahar Editor)

Evoé!! No domingo de carnaval passou em frente a minha casa um estranho bloco. À frente, fantasiado de Baco, um rapaz forte, com longos cabelos louros, convidava todos a segui-lo. Junto dele, moças seminuas batiam pandeiros, sopravam flautas de madeira, dançavam freneticamente e emitiam sons guturais. Dançando ao ritmo dos pandeiros, tirei minha roupa, beijei meus filhos e minha esposa e segui em transe aquela procissão exótica. De todas as casas e de todos os becos corpos se uniam à cauda humana embriagada pelo ritmo e pela dança. Velhos, jovens, ricos, mendigos, cegos, pernetas, homens e mulheres, que há anos (alguns desde a perdida infância) vinham esticando a corda de suas condutas, afrouxavam-na e dançavam loucamente, seguindo o cortejo puxado por Baco e pelas Bacantes.

Seguimos para fora da cidade, pulando e completamente esquecidos de nossos cansaços e nossos males até chegarmos à entrada de uma floresta, marcada por uma placa em que se lia: “Bem-vindo à Pasargada”. Entramos em um poço de águas transparentes, onde as diversas cascatas que pendiam das rochas lavavam nossos corpos e nossas almas. De baixo daquelas cascatas vi os velhos rejuvenescerem, mulheres feias ficarem belas, amputados recuperarem seus membros, cegos voltarem a enxergar, mendigos saírem cheirando a sândalos. Em volta do poço, sob a sombra das árvores, fontes jorravam vinho, frutas maduras e saborosas estavam ao alcance das mãos, as bacantes serviam espetos de churrasco com carnes sangrentas, e nosso mestre e DJ Baco enchia o ambiente com músicas que convidavam ao delírio. Passamos três dias naquele paraíso, esquecidos de nós, dançando e ouvindo os apelos da carne, misturando nossos corpos nus em meio a almofadas, vinho e um banquete inesgotável.

Na quarta-feira, quando acordei, não havia mais música, nem banquete, somente centenas de corpos doídos misturados numa grande ressaca. As rugas, as dores, as doenças, as faltas haviam voltado e muitos gemiam. Toda aquela euforia, tão desejada e tão potente há apenas algumas horas, passou, deixando-nos completamente vazios, apenas com um gosto amargo na boca. O eterno carnaval revelou-se apenas mais uma fantasia de carnaval.

Nosso Baco então apareceu transformado: magro, cabelos e barbas brancas, vestia uma túnica e parava junto de cada um, esfregando nas nossas testas as cinzas que restaram do churrasco e dizendo: “Tu és pó e ao pó retornarás”. Saiu daquela floresta desencantada e todos o seguimos em silêncio, arrastando nossas penas; os mais jovens e saudáveis apoiando os mais velhos e doentes; os que enxergam guiando os cegos. A paisagem a nossa frente ia perdendo as cores, entramos no sertão seco, ossos pelo chão, árvores mirradas em meio à grama quase marrom. Nosso guia parou diante de uma placa, onde lemos: “Você chegou ao Liso do Sussuarão. Por mim se vai à cidade dolente. Por mim se vai à eterna dor. Por mim se vai à gente condenada. Justiça moveu meu alto feitor. Fui feito por poderes divinais, pela suma sabedoria e pelo supremo amor. Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais.”

Vacilamos diante da fronteira, mas o caminho de volta nos parecia perdido. Nosso mestre, que alguns chamavam de Buda, outros de Moisés, outros de Jesus, outros de Maomé, seguiu em frente com coragem, e de sua coragem nos alimentamos para segui-lo ao interior do deserto. No meio do deserto nos sentamos em volta dele e ali ficamos por 45 dias, dividindo o pouco arroz e a pouca água que o mestre tirava de um pequeno pote e entregava em nossas mãos. No 45º dia abriu-se na terra uma fenda por onde passava um rio. O mestre pegou o pote de comida e lançou ao rio. O pequeno pote boiou e subiu o rio em direção à nascente. Ficamos atentos ao mestre, sabendo que naquele momento ele estava mais próximo dos segredos divinais. Naquele momento ele era Moisés, Jesus, Buda, Maomé, Raul Seixas, Maria, Madalena, Sêmele, Baco, Zorba, e também eu, e cada um de nós, e mais milhões de outras pessoas sem deixar de ser apenas uma pessoa. De seu corpo começaram a brotar galhos com folhas bem verdes e frutos de todas as cores. Então ele falou: “Até aqui, meus amigos, vocês têm amado os frutos e odiado a árvore; ou amado a árvore e odiado seus frutos. Chegou o tempo de amar a árvore e os frutos”. E morreu.

Sumiram os galhos e os frutos que brotaram de seu corpo, como sumiu o rio que tinha aparecido no meio do deserto. Logo nos dispersamos pelo deserto, cada um procurando sair por um caminho, sem que ninguém pudesse achar a saída. Muitos desanimavam e deitavam sobre a areia seca, torrando ao sol. Assim ficamos por dois dias e duas noites, até que na alvorada do terceiro dia um arauto do rei corria por todo o deserto e gritava: “Alegrai-vos! Alegrai-vos! Ele ressuscitou! Ele ressuscitou” Os que estavam deitados levantaram, os que vagavam pararam e todos nos juntamos novamente no centro do deserto. Ele veio, abraçou cada um, e novamente desapareceu de nossas vistas e do alcance de nossas mãos, mas ainda estava ali, dentro de nós e em tudo. Juntos voltamos para a cidade. Cheguei na minha casa na Páscoa, onde todos riam e celebravam um ser que é Deus e homem, corpo e espírito, três e um, eterno e transitório, repouso e movimento, delírio e realidade, carnaval e quaresma, morte e ressurreição. Na boca um sabor de chocolate.
(texto de janeiro de 2008)

Literatura e Futebol

Em poucas partidas de futebol cabem toda literatura e toda sabedoria de vida. Aliás, muitos torcedores poderiam ter uma relação mais saudável com sua paixão se lessem os grandes livros de literatura e filosofia e aprendessem suas lições. Os temas da literatura e da filosofia de vida são os mesmos que transbordam do maltratado coração do torcedor de futebol:

1) A roda da fortuna. É a força do destino sempre em movimento levantando e derrubando torcedores, jogadores e times de futebol. Assim como a roda não vê quem ela carrega para cima e para baixo em suas engrenagens, nós também não podemos vê-la. Não sabemos, portanto, se estamos no ápice e vamos começar a descer, se estamos no nadir e vamos começar a subir, se vamos subir ou descer ainda mais, nem a velocidade do seu movimento. O melhor a fazer é manter o coração no presente: não deixar que medos e sonhos ofusquem a alegria de uma vitória, nem que as derrotas joguem suas sombras no futuro incerto.

2) O sofrimento e a alegria estão relacionados aos desejos frustrados ou realizados. E é a qualidade do time que diz ao torcedor o que pode ambicionar. Assim, o torcedor pode ficar eufórico em um ano porque seu time ficou entre os dez primeiros colocados e sofrer muito no ano seguinte com um vice-campeonato. Arthur nos ensina em seu livro Aforismas para a sabedoria de vida: “Um homem que nunca alimentou a aspiração a certos bens, não sente de modo algum a sua falta e está completamente satisfeito sem eles; enquanto um outro, que possui cem vezes mais do que o primeiro, sente-se infeliz, porque lhe falta uma só coisa à qual aspira. A esse respeito, cada um tem um horizonte próprio daquilo que pode alcançar, e suas pretensões vão até onde vai esse horizonte. Quando algum objeto se apresenta para ele nos limites desse horizonte, de modo que possa ter confiança em alcançá-lo, sente-se feliz; ao contrário, sente-se infeliz quando dificuldades advindas o privam de semelhante perspectiva. Aquilo que reside além desse horizonte não faz efeito sobre ele. Eis por que as grandes posses dos ricos não inquietam o pobre, e, por outro lado, o muito que já possui, se as intenções são malogradas, não consola o rico. A riqueza é como a água do mar: quanto mais a bebemos, mais sede sentimos.”

3) A frustração do desejo gera ódio e sentimento de ser vítima de injustiça. Para dar vazão a esse ódio o sofredor busca a causa da injustiça, o inimigo. Os juízes são os candidatos naturais, mas há quem ponha a culpa no técnico, em um jogador, na camisa, nos torcedores, no torcedor pé-frio, em si. Jó foi um dos mais radicais nessa busca por culpados, indo pedir satisfações a Deus; já seus companheiros diziam que tudo de ruim que aconteceu com ele era, de algum modo oculto, merecido. Há quem procure uma conspiração por trás de todas as derrotas, que una as frustrações numa só explicação, o que amplia a carga de ódio sobre esses supostos conspiradores.

4) Como os desejos variam de acordo com a situação de cada um, o ódio causado pela sua frustração colocava, e ainda coloca, o homem num derramamento de sangue sem fim. A solução para isso no comportamento externo seria conceder a um terceiro, à Justiça, dentro de certas normas, o poder/dever de julgar e aplicar a pena às faltas mais graves. Internamente, o único jeito é o cultivo da tolerância, do perdão, da união de todos no sofrimento humano. Nesse sentido, Jesus disse que não era juiz e pedia ao homem para amar seus inimigos; Buda pedia compaixão; e Aquiles, que movido pela cólera matou Heitor e arrastou seu corpo, se identificou com o pai de Heitor pela compaixão. Se identificaram pelo sofrimento: Aquiles pela perda de seu amigo, e Príamo pela de seu filho.

5) Apesar de certa disputa pelo troféu de maior sofredor, ainda é possível conseguir certa união entre os torcedores com base no sofrimento compartilhado, na compaixão. Pensar que todos sofrem com erros de juízes, de goleiros, perdem copas e campeonatos em uma infelicidade, nos faz sentir irmãos. O que parece impossível é ser um pouco solidário e tolerante na alegria. O instituto do futebol mais difundido entre os torcedores é colocar água no chope dos outros. Justamente quando seu time vence e você quer desfilar sua glória pelos quatro cantos da cidade, você vai ouvir: "o juiz roubou", "que sorte, hein?", "cavalo paraguaio, ainda vai cair", "também, com aquele patrocinador", "a vida não é só futebol"; o torcedor do outro time vai se pegar a qualquer coisa para colocar água no seu chope.

6) O parentesco entre a dor e o prazer. Sócrates disse que embora os dois nunca estejam juntos, parecem estar ligados, pois não se consegue pegar um, sem o outro vir grudado. Arthur enxergou que a felicidade é uma quimera e o sofrimento é real, porque atrás de cada desejo satisfeito tem pelo menos uns dez na fila para tomar o lugar daquele. Assim, junto com uma corrente do budismo, ele achava que seria sábio não procurar a felicidade, mas orientar a vida para evitar ao máximo o sofrimento. Já Frederico entendeu que a felicidade e o sofrimento são como irmãs gêmeas que têm sempre a mesma altura. Se você procura o mínimo sofrimento, terá que se contentar com uma felicidade atrofiada; se você busca grande felicidade estará sujeito também a mais sofrimento. Assim, ao contrário de Arthur, convocava o homem a, como um herói, dizer sim à vida, na busca de grande felicidade, mesmo sabendo que esse também é o caminho de grande sofrimento. No Brasil, temos o poeta botafoguense do sim heróico à vida, que em apenas uma música escreveu: "a vida só se dá pra quem se deu, pra quem chorou, pra quem amou, pra quem sofreu"; "Não há mal pior do que a descrença" e "Eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai porque tem medo de sofrer".

O futebol é um símbolo tão bom para a vida que poderia terminar esse pequeno ensaio com qualquer frase retirada dos grandes mestres da humanidade, mas ouço Sêneca sussurrando ao meu ouvido: “Torcedor, nenhuma promessa lhe foi feita para este campeonato - não, exagerei em minha sugestão -, nenhuma promessa lhe foi feita até mesmo para este jogo.” Mas, se não foi feita nenhuma promessa, também não foi rogada qualquer praga.
(texto de junho de 2007)