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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Partida

A literatura é barco. A literatura é asa. Ou melhor: a literatura é navegar, é voar. Mas a ciência já nos deu barcos e aviões; então para que serve a literatura? A literatura responde: O barco da ciência pode levar o homem à terceira margem do rio, ou à ilha desconhecida? O avião da ciência pode levar o homem ao paraíso? Novamente ressurge a literatura. Pouco importa à literatura se de fato existe ou não a terceira margem, a ilha desconhecida, o transcendente, o paraíso; o que sempre ressuscita a literatura é o desejo do homem de ir além.

Muito bem, você pega o avião da ciência e voa, pega o barco da ciência e navega. Mas pegue os contos A terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa (do livro Primeiras Estórias) e O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago, ou qualquer outro livro de literatura. Leia. Perceba que o inventor é o leitor, que o livro só cresce, vive, navega, voa na recriação individual de cada leitor. Não se pode, portanto, abstratamente, dizer para que se leia esse ou aquele livro, pois o livro não é garantia de nada. É senso comum dizer que o bom livro é o que se lê com prazer. O livro é matéria-prima, quem faz alguma coisa, ou não, é o leitor. E apenas um leitor fará sempre novas leituras dos mesmos livros. O que chamamos de clássicos da literatura nada mais são do que livros que já provaram sua qualidade como matéria-prima, por atravessarem séculos sem perder a capacidade de inspirar novos leitores, novas leituras, e novos livros. Bom livro é aquele (qual for) que inspira José, ou João, ou Maria naquele exato momento de sua vida.

Mas aqui fui chamado para recomendar livros. Então recomendo a literatura grega e a Bíblia. Porque são amplos e belíssimos trabalhos da literatura, e o homem está todo ali, vivo e presente. E porque grande parte da literatura é recriação da Bíblia e da literatura grega, que são, por sua vez, recriação eterna do humano. Recomendo: a Bíblia de Jerusalém; Odisséia, de Homero, da Edições Cotovia, e as traduções de teatro grego de Mario da Gama Cury, pela Editora Jorge Zahar: Ésquilo (Oréstia: Agamenon, Coeforas e Eumenides); Sófocles (A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona); Eurípedes (Medeia , Electra, Alceste, e As Bacantes); e Aristófanes (A greve do sexo, e A Revolução das Mulheres). A interpretação, ou recriação, deve ser individual e livre, mas para entender estes textos é necessário leitura complementar. Para isso, minhas dicas são Mitologia, de Edith Hamilton, Ed. Martins Fontes; A Bíblia, de Karen Armstrong, Jorge Zahar Editor; e Como Ler a Bíblia, de Steven McKenaie.

(texto de junho de 2006, primeira de uma série de crônicas que fiz sob encomenda, e que vou postando por aqui)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Carta ao escritor de Menino-Serelepe


Antonio Lobo Guimarães,

Acabei de ler o seu Menino-Serelepe. Junto com o narrador, brinquei, me aventurei, chorei, ri, e aprendi. Flanei pelo mundo encantado de sua Aguinhas da infância. Por meio das pequenas estórias, conheci Seu Dé, pai firme e bondoso; os cuidados excessivos da mãe Neli; a vó Cema e a vó Margarida, coração e sabedoria de vida; a prosa e os modos agradáveis do Pai Véio. E ainda pencas de primos, amigos, tios, professores... todos contribuindo, de um jeito ou de outro, com o amadurecimento e os descobrimentos do menino.

Para mim, você chegou lá onde toda literatura quer chegar. A literatura parte de um desejo intenso de dividir algo inefável. Resta ao escritor descobrir com quais estórias, e contadas de que modo, ele poderá atingir seu objetivo. Estórias reais: buscadas na memória ou pesquisadas; estórias fictícias: fantásticas ou verossímeis (podendo haver ainda combinações desses tipos).

Enfim, seu Menino-Serelepe entra na longa tradição de literatura dos chamados memorialistas. Lendo o livro, também me lembrei da minha infância, da minha família e de outros livros de memórias que li com muito prazer. O primeiro, ainda adolescente, foi Um Chapéu para Viagem, de Zélia Gattai. Fiquei espantado: então alguém pode simplesmente contar sua vida e torná-la tão agradável e bela? Mais recentemente, conectado com minha velha paixão pela música popular brasileira, me encantei com as memórias do Márcio Borges, no livro Sonhos não Envelhecem, e do Nelson Motta, no livro Noites Tropicais.

Obrigado por dividir comigo, via literatura, sua infância e amadurecimento, personagens e estórias,

Roberto

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Clarice na Cabeceira

São vinte e duas portas - umas amplas e claras, outras estreitas e escuras. Vinte e dois contos para entrar no mundo selvagem de Clarice Lispector. Perigoso ou precioso? Quem quer penetrar em tais profundezas? Cada conto foi escolhido com carinho por leitores de Clarice, que nos levam pela mão até o limiar desse estranho mundo. Aos poucos, conforme nos familiarizamos com a linguagem, os símbolos e os espantos da literatura de Clarice, descobrimos que o mundo que estamos explorando é o nosso interior mais secreto.

O livro Clarice na cabeceira serve tanto como entrada no mundo ficcional de Clarice como para revisitar esse mundo, uma vez que reúne contos de todos os seus livros de contos. Admiro profundamente, também, os títulos que a autora escolheu para seus livros: A maçã no escuro; Perto do coração selvagem; Um sopro de vida; A hora da estrela; A via crucis do corpo; Felicidade clandestina; Onde estivestes de noite – os títulos parecem sua obra condensada ao indispensável.

Há também outra Clarice, mais próxima, confessional, nem por isso menos instigante, que pode ser encontrada no livro Aprendendo a viver, que reúne crônicas escritas para o Jornal do Brasil. Nunca me esqueço de um texto em que ela se surpreende com as contas de um inglês que descobriu que, descontando-se as horas de sono, trabalho, locomoção, ainda restam-nos 1.930 horas por ano. “Mil novecentos e trinta horas para se fazer o que se quiser, ou puder. A vida é mais longa do que a fazemos. Cada instante conta.”

Inesquecível também esse texto:

“EM BUSCA DO PRAZER

E tanto sofrimento por estar, às vezes sem nem saber, à cata de prazeres. Não sei como esperar que eles venham sozinhos. E é tão dramático: basta olhar numa boate à meia-luz os outros: a busca do prazer que não vem sozinho e de si mesmo. A busca do prazer me tem sido água ruim: colo a boca e sinto a bica enferrujada, escorrem dois pingos de água morna: é a água seca. Não, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.”