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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Quando fui outro, de Fernando Pessoa (antologia organizada por Luiz Ruffato)

Fernando Pessoa foi um dos meus ídolos da juventude. Deitava com o livro verde que reunia sua obra poética e ali fazia minha pescaria. Entre tantos poemas que não entendia, não me diziam e os devolvia quase intactos ao livro, de repente saltava do livro aquele poema que se tornava eu. Poemas que passavam a ser meus, pois expressavam a sede de viver plenamente, e a decepção de não consegui-lo. Expressavam a beleza e a dor encontrada em tudo que há e passa. Expressavam forças em revoada, entre o querer e o ver, entre o buscar e o olhar, entre o ânimo e o desânimo. 

Do mesmo modo, em forma de pescaria, seguindo critérios do coração em meio à gigantesca produção do poeta, Luiz Ruffato compôs a bela antologia Quando fui outro, Editora Objetiva/Alfaguara. Um livro para apaixonados, que reúne poemas que foram meus na juventude, tantas vezes lidos, e outros textos, que se não os peguei, foi porque não os encontrei em minhas pescarias solitárias. Um livro para manter na cabeceira e reler pela vida afora, para não me perder do jovem que fui.

Os poemas em prosa e em verso de Fernando Pessoa não encontram leitores, mas almas gêmeas angustiadas pelo abismo entre o que sentem e o que fazem, e que acham ridícula esta angústia e o sentir-se assim.

Entre tantos poemas desta coletânea, me espantou o fato de ver estampado na página 191 o trecho que mais me tocou (não sei por que) quando li o Livro do Desassossego, e que jamais esqueci. Encontrar ali este pequeno texto deu-me a intuição de que o critério utilizado nesta coletânea de Pessoa é semelhante ao que eu utilizava em minhas pescarias na juventude. Com a palavra, Fernando Pessoa, ou Bernardo Soares:

Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.

Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e pela lembrança. “Morreu ontem”, respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.

Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que eu via habitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.

O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um “o que será dele?”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.


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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Comer, Rezar, Amar

Ontem fui assistir ao filme Comer, Rezar, Amar. Não gostei muito; desconfio que o livro seja bem melhor. O que me chamou a atenção foi que o filme termina com a palavra travessia, em italiano (attraversare) e em inglês (cross over). A narrativa de Riobaldo no livro Grande Sertão: Veredas também se encerra com esta palavra, em um sentido muito próximo ao recebido em Comer, Rezar, Amar.

Riobaldo e Liz contam suas histórias com o objetivo de explorar os mistérios da vida, e terminam por escolher travessia como palavra símbolo. Gostamos, ou melhor, nos apegamos à margem, ao porto em que estamos, porque nos dá segurança. Mas não queremos ficar, desejamos partir, nos lançar no mar ou rio perigoso, atravessar até outro lugar, uma margem distante que mal conseguimos enxergar. O que nos mantém onde estamos é o medo. Até que a vontade supera o medo na coragem de partir. Mas nunca chegamos a este outro lugar desejado, chegamos sempre a lugares inesperados. A vida na realidade acontece neste movimento de busca, na travessia.

Travessia também é o título de uma música do Milton Nascimento e do Fernando Brant; mas neste caso sei que foi uma homenagem a Guimarães Rosa, segundo o relatado no excelente Sonhos Não Envelhecem, de Márcio Borges. Será que o livro Comer, Rezar, Amar também termina com a palavra travessia? Será coincidência ou uma referência ao livro de Guimarães Rosa? Qual será a última palavra da tradução italiana e da inglesa de Grande Sertão: Veredas?

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Diálogo

O homem chegou ao Céu e foi logo abordando Deus:
- Pai, qual é meu lugar aqui no Céu? Eu sofri à beça lá na Terra.
- Meu filho, não há nada aqui. A vida na Terra foi meu presente pra vocês. Não era um meio para ir a outro lugar. Não era um teste. A vida era o fim.
- Como assim, e todo este sofrimento?
- Não consegui fazer nada melhor. Há sofrimentos inevitáveis e até importantes. Há outros evitáveis, e vocês conseguiram criar maneiras muito boas de aliviá-los. Mas há ainda sofrimentos que vocês criaram com essa mania de achar que a vida é um meio para alcançar o paraíso aqui no Céu ou mesmo na Terra. Vocês pisaram na vida para chegar a um lugar que não existe.
- Mas eu não fiz nada...
- É verdade, você é daqueles que não fazem nada. Acreditou tão profundamente que a vida deve ser um meio para algo maior, que ficou paralisado. Só faria alguma coisa se tivesse certeza que daria bons resultados; e como não se pode ter certeza disso, não fazia nada. Foi fazendo o que os outros pediam, pois assim pelo menos servia a vontades alheias... mas os outros não pediam muitas coisas, e o que pediam não lhe interessava. É, você jogou sua vida fora por que não acreditou nela.
- Ai meu Deus... Posso voltar? Me dá mais uma chance?
- Não.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Em busca de sentido, de Viktor Emil Frankl

“No entanto se move”

O astrônomo Copérnico (1473 – 1543), ao estudar o movimento dos astros, não ficou satisfeito com o geocentrismo – a suposição (tida como saber certo na sua época) de que a Terra permanece imóvel no centro do mundo, com todos os outros astros girando ao seu redor. Por isso, elaborou sua astronomia com base na hipótese heliocêntrica de Aristarco de Samos (sec. III AC), em que o Sol é uma estrela fixa em torno da qual a Terra e os demais planetas giram. 

Viktor Emil Frankl elaborou sua psicologia em uma época dominada pela psicanálise de Freud, em que o homem era visto como um ser determinado por impulsos instintivos, como uma máquina, um autômato. Qualquer formação do eu, qualquer personalidade, era considerada o resultado de um sistema de repressões e sublimações dos impulsos. Sem negar a realidade dos impulsos, Frankl postulou a existência de um núcleo espiritual autêntico em cada ser humano (que transita pelo inconsciente e pelo consciente), capaz de decidir com certo grau de liberdade qual resposta será dada aos impulsos internos e à situação externa presentes.

E qual a relação entre a teoria psicológica de Frankl e a revolução de Copérnico? Esta é uma bela alegoria daquela. Ao contrário do que pensávamos, a Terra não fica parada implorando diariamente para que o Sol venha lhe trazer a luz. O Sol fica parado. É ela, a Terra, quem gira, rodopia e rebola, fabricando assim o dia, a noite e as estações. Esta revolução do pensamento em busca da verdade ficou conhecida como revolução copernicana. Pode também ser chamada de revolução copernicana qualquer mudança radical no ponto de vista até então dado como certo.


A passagem da psicanálise (ou qualquer outra psicologia cientificista) a uma psicologia existencialista é semelhante ao amadurecimento do homem. Quando o homem cresce, supõe-se que ele deixe de se ver como um bebê. O bebê não pode fazer mais do que berrar e sorrir diante do que lhe é dado pelo mundo que se movimenta a sua volta, ao passo que até uma criança pode começar a agir de forma ativa e responsável diante do mundo que se lhe apresenta.

“O que se faz necessário aqui é uma viravolta em toda a colocação da pergunta pelo sentido da vida. Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós. Falando em termos filosóficos, poder-se-ia dizer que se trata de fazer uma revolução copernicana. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora – perguntas que precisamos responder, dando a resposta adequada não através de elucubrações ou discursos, mas apenas através da ação, através da conduta correta. Em última análise, viver não significa outra coisa se não arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento.”

A psicologia de Viktor E. Frankl altera radicalmente a posição do sujeito em relação à vida. O mais importante não é o quanto de prazer ou sofrimento a vida nos dará, mas qual a atitude, quais tarefas vou assumir diante da vida que está aí, com seus sofrimentos e prazeres. Na realidade, o sujeito deixa de ser objeto e é reconhecido como sujeito.

Quem quiser conhecer melhor a vida e a teoria de Victor Emil Frankl deve ler o livro Em busca de sentido. O livro é composto de duas partes. A primeira parte narra a experiência do autor nos 4 anos (de 1941 a 1945) em que viveu em campos de concentração nazistas, tendo sido escrita poucos anos depois de sua libertação. A segunda parte faz um resumo de sua teoria psicológica, a que deu o nome de logoterapia. Há ainda uma conferência (A tese do otimismo trágico) em complemento à segunda parte.

"O ser humano não é uma coisa entre outras; coisas se determinam mutualmente, mas o ser humano, em última análise, se determina a si mesmo. Aquilo que ele se torna – dentro dos limites dos seus dons e do meio ambiente – é ele que faz de si mesmo. No campo de concentração, por exemplo, nesse laboratório vivo e campo de testes que ele foi, observamos e testemunhamos alguns dos nossos companheiros se portarem como porcos, ao passo que outros agiram como se fossem santos. O ser humano tem dentro de si ambas as potencialidades; qual será concretizada depende de decisões e não de condições.
Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele também é aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-Nosso ou o Shemá Yisrael."