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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Não vai ser um FELIZ NATAL, nem um PRÓSPERO ANO NOVO

Vai haver escuridão e trevas.

Você pode ter esperança de alegrias, de realizações, de encontros amorosos, e, principalmente, de renascer a cada pancada que a vida possa dar. Mas a ideia de uma vida e um mundo iluminado e perfeito que é vendida nesta época do ano não vai rolar. 

Você pode fazer um grande esforço para ser menos estúpido do que tem sido, e desse modo evitar alguns sofrimentos e encontrar alguma felicidade, apesar da escuridão. Mas, mesmo assim, nada está garantido.

Há ainda a esperança de que o mundo melhore, dependendo também do nosso esforço para sermos menos tolos e egoístas. Mas um mundo maravilhoso chegando com data marcada, esqueça. Essa ideia (porque falsa e tão longe do que podemos esperar alcançar) me deixa tão desanimado quanto o oposto niilista de mundo e homens condenados, sem qualquer esperança de sentido.

O natal simbolicamente é uma luz frágil no meio da noite mais longa do ano. Um bebê, uma vela, que precisa de cuidados. Jesus amou, bebeu vinho, defendeu os sofredores, fez amigos; mas também sofreu, foi traído e morreu. A ressurreição é a eterna e frágil esperança, que nada pode sem nossa participação.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O filho eterno, de Cristovão Tezza


Em O filho eterno, o escritor Cristovão Tezza ousou narrar com a sinceridade da literatura sua vida do ponto de vista do relacionamento de 25 anos com Felipe, o filho mongoloide. A palavra é forte, o pai em pouco tempo não conseguirá mais pronunciá-la, dirá que tem um filho com mongolismo (em 1980, ano do nascimento do filho, ninguém sabia o que era síndrome de Down). 

Mas o narrador não é o pai. O foco narrativo é em terceira pessoa: no princípio ele, depois também o pai, mas nunca será nomeado. Somente Felipe, o filho eterno, é chamado pelo nome próprio. A história do pai,  que conheceremos desde a infância por meio de flashbacks,  é uma busca confusa por uma essência: ator de teatro, relojoeiro, aventureiro, marinheiro, professor, marido, pai; seu traço mais constante é a obsessão de se tornar escritor, com livros publicados e lidos.

O foco narrativo em terceira pessoa é usado não apenas para narrar os acontecimentos, mas principalmente para revelar os pensamentos mais secretos do pai, a cada momento de sua difícil travessia. Permite ainda distanciamento emocional do narrador e uma riqueza narrativa impossível na primeira pessoa, alternando o presente histórico, que predomina, com os outros tempos narrativos.

A opção pela ficção é a opção por um relato verdadeiro, que seria impossível em uma autobiografia. Todos nós temos o direito (e até o dever) à ficção do eu. Afinal, o eu, na medida do possível, não é egoísta, não odeia, não perde a paciência, não bate, não quer fugir da esposa e do filho, não deseja a morte de ninguém.

O enredo, um pai tentando ser um escritor e um filho com Down, pode afastar muitos leitores. Besteira. Um dos méritos da literatura é nos aproximar de mundos desconhecidos e derrubar barreiras. Além disso, a história narrada é a ponte para o escritor falar sobre tudo. Sobre o tempo, sobre a família, sobre a normalidade e o diferente, e sobre coisas banais, como uma cidade e um nome.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Ter que ou não ter que, eis a questão


No último feriadão, fui ao Rio de Janeiro passear e assisti a duas peças de teatro: A alma imoral, baseada no livro de Nilton Bonder, e O filho eterno, baseado no livro de Cristóvão Tezza. As duas muito boas, instigantes.

Voltei a Belo Horizonte assombrado por este pensamento: tenho que ler A alma imoral, tenho que ler O filho eterno, tenho que ler A alma imoral, tenho que ler O filho eterno. Abria a estante da sala e ali estavam tantos livros cobrando minha atenção: Os Miseráveis, Ressurreição, Anna Kariênina, Os Irmãos Karamázov, Moby Dick, Orgulho e Preconceito, Admirável Mundo Novo, Sigmund Freud (Volume 16), 3096 dias, Feliz por nada, Religião para ateus,

Na gaveta, Uma breve história do mundo com a leitura interrompida. 

Entro na livraria e encontro outros livros que tenho que ler: As aventuras de Tom Sawyer, As aventuras de Huckleberry Finn, O idiota, O conde de Monte Cristo,

No trabalho dois cursos a distância, processos, reuniões. Em casa, filhos com impetigo, urticária, urgências, carências, esposa atarantada; por certo espera-se alguma atitude do pai e marido. E ainda por cima, o Botafogo perdeu de novo (nem a ilusão me dá um refresco). Tomo um remédio e vou dormir.

O que tenho que fazer é deixar de tanto tenho que. Me esvaziar de tanta cobrança interna. Não tenho que ler livro nenhum. Não tenho que nada (ou quase nada). Tenho que está errado, dizem alguns gramáticos, e acertam sem querer bem no alvo.

A pergunta (difícil) é: O que eu quero?

Por ora, quero escrever algumas linhas sobre A alma imoral, de Nilton Bonder, e sobre O filho eterno, de Cristóvão Tezza, mesmo sem ter lido os livros, mesmo que nunca os leia.

A alma imoral

Fui assistir à peça A alma imoral, adaptação da atriz Clarice Niskier para o livro de Nilton Bonder. Se tiverem oportunidade, não deixem de assistir à peça, que já está há seis anos em cartaz. Se houvesse um livro com o roteiro da peça, eu recomendaria. Mas o que há para ler é o livro A alma imoral.

Gosto de ler o que o rabino Nilton Bonder escreve. Já li seus livros Tirando os sapatos, A arte de se salvar e O sagrado, além de alguns textos pequenos disponíveis na Internet. Mas nunca tinha conseguido ler A alma imoral. Alguns parágrafos são muito difíceis, e o livro começa com conceitos da psicologia evolucionista com os quais não estou familiarizado. Ainda assim, me parece um livro importante, principalmente depois que a peça me transportou diretamente para o centro da questão do livro.

A alma imoral nos apresenta a vida como tensão entre a obediência às regras estabelecidas e a transgressão a essas regras. O homem leva essa tensão para a consciência, e precisa honrar tanto as leis do passado, representadas pelo corpo moral, quanto as aspirações do futuro, representadas pela alma imoral.

Ao recontar histórias da Bíblia e anedotas da tradição judaica, Nilton Bonder mostra como em determinadas circunstâncias o errado (de acordo com a lei) é o certo (de acordo com o espírito da lei), e o certo (de acordo com a lei) é o errado (do ponto de vista do espírito). E é nesse jogo e nessa tensão que a traição de hoje instaura a tradição de amanhã. 

A possibilidade de mutação, portanto, deve estar implícita em qualquer lei, pois uma lei cujo único sentido seja sua eterna perpetuação é uma lei sem sentido, um corpo sem alma. E um mundo estreito.

O filho eterno

Em O filho eterno, o escritor Cristóvão Tezza ousou narrar com a sinceridade da literatura sua vida do ponto de vista do relacionamento de 25 anos com Felipe, o filho mongoloide, ou melhor, com mongolismo (em 1980, ano de nascimento do filho, ninguém sabia o que era síndrome de Down).


Mas não é uma autobiografia. Para evitar qualquer confusão, a narrativa é em terceira pessoa. Ele, o pai, o escritor, o marido. A terceira pessoa é usada não apenas para narrar os acontecimentos, mas principalmente para revelar os pensamentos mais secretos do pai, sem deformar sua identidade. 

A opção pela ficção é a opção por um relato verdadeiro, que seria impossível em uma autobiografia. Todos nós temos o direito (e até o dever) à ficção do eu. Afinal, o eu, na medida do possível, não é egoísta, não odeia, não perde a paciência, não bate, não quer fugir da esposa e do filho, não deseja a morte de ninguém.

Viktor E. Frankl e o tempo


Viktor Emil Frankl desenvolveu uma abordagem muito original do tempo, que pode nos ajudar a lidar com a vida, que é tempo. 
A eternidade, anseio do homem, normalmente é associada a uma vida que não morre, ou a algo fora do tempo e, portanto, fora de nós. Frankl inverteu esse raciocínio e viu que a única coisa eterna é o passado. O que foi feito, o que aconteceu, foi feito e aconteceu para sempre. Foi salvo. E podemos encarar nossa vida no presente como escolha do que queremos eternizar, salvar no passado, entre as tantas possibilidades que o futuro nos oferece:

Se cada coisa fica para sempre armazenada no passado, é importante decidir no presente o que queremos eternizar, levando-a a fazer parte do passado. Este é o segredo da criatividade: nós removemos alguma coisa do nada do futuro “transformando-a em passado”. A responsabilidade humana, portanto, está em saber escolher as possibilidades do futuro, transformando as possibilidades em realidades, pondo-as a salvo no abrigo do passado.

Esta, portanto, é a razão pela qual tudo é tão transitório: tudo é passageiro porque tudo foge da nulidade do futuro para a segurança do passado! É como se cada coisa estivesse dominada por aquilo que os físicos antigos chamavam de horror vacui, o medo do vazio: é por isso que tudo vai correndo do futuro para o passado, do vazio do futuro para a existência do passado. É a razão pela qual há uma congestão na “passagem estreita e na abertura do presente”, porque ali todas as coisas são detidas e se atropelam, esperando ser libertadas – como um evento que se faz passado, ou como uma de nossas criações e ações, admitidas por nós na eternidade.

O presente é a fronteira entre a não-realidade do futuro e a realidade eterna do passado. Justamente por isso é a “linha demarcatória da eternidade”; em outras palavras, a eternidade é finita: estende-se só até o presente, o momento presente em que escolhemos o que desejamos admitir na eternidade. A fronteira da eternidade é onde a cada momento de nossas vidas é tomada a decisão sobre o que queremos eternizar ou não.

Compreendemos agora que engano acontece quando entendemos a frase “ganhar tempo” como expressão para o fato de deixarmos algo para o futuro. Ao contrário, ganhamos tempo quando o libertamos e o depositamos no passado.

Algo sobre a morte

E, retomando a analogia da ampulheta, o que acontece quando toda a areia escorreu pela passagem e a parte superior está vazia, quando o tempo passou para nós, e nossa vida está completa e terminada? Em uma palavra, o que acontece na morte?

Na morte tudo o que se passou congela-se no passado. Nada mais poderá ser modificado. A pessoa não tem mais nada á sua disposição: nem mente, nem corpo, ela perdeu seu ego psicológico. O que lhe resta é o self, o eu espiritual.

Muita gente acredita que a pessoa que está morrendo vê sua vida toda em uma fração de segundo, como um filme em alta velocidade. Assumindo essa imagem, podemos dizer que o próprio homem é o filme. Então ele “é” sua vida, ele se transformou na história de sua vida – tenha sido ela boa ou má. Ele se fez seu próprio céu ou seu próprio inferno.

Isso leva ao paradoxo que o passado do homem é seu verdadeiro futuro. O homem enquanto vive tem um futuro e um passado; o moribundo não tem futuro no sentido usual, mas apenas um passado; o morto, porém, “é” seu passado. Que ele seja “somente” sua vida passada não tem importância; afinal, o passado é o modo mais seguro de ser. O passado é exatamente aquilo que não pode mais ser eliminado.

O passado é “passado perfeito” no sentido literal do termo. A vida então está completa, realizada. Mesmo se no decurso da vida apenas fatos consumados singulares passem pela cânula da ampulheta, agora, depois da morte, a vida passou em sua totalidade, transformou-se em um fato consumado perfeito.

Isso leva a um segundo paradoxo – e duplo, por sinal. Se é verdade que o homem, como vimos, faz de alguma coisa uma realidade ao colocá-la no passado (e assim ironicamente salvando-a de sua transitoriedade) – se é assim, é também o homem que se faz realidade, que “cria” a si mesmo. Em segundo lugar, ele não é bem uma realidade a partir de seu nascimento, mas a partir de sua morte; ele está “criando” a si mesmo no momento da morte. Seu eu não é algo que “é”, mas algo que vai acontecendo, e por isso chega a ser completamente só quando a vida é completada pela morte.

Na realidade, na vida cotidiana o homem tende a entender mal o sentido da morte. Quando o despertador toca de manhã e nos tira de nossos sonhos, sentimos tal fato como se algo de terrível estivesse acontecendo no mundo de nossos sonhos. E ainda presos em nossos sonhos, às vezes, não percebemos (ou pelo menos não de imediato) que o despertador nos chama para a existência real, nossa existência no mundo real. Mas nós mortais não agimos de maneira semelhante, quando nos aproximamos da morte? Não nos esquecemos igualmente que a morte nos desperta para nossa verdadeira realidade?

Mesmo se for uma mão amorosa e acariciante que nos desperta, por mais que seja gentil, nós não percebemos logo sua gentileza. Mesmo então sentimos apenas uma intromissão no universo de nossos sonhos, uma tentativa de lhes dar um fim. Assim, freqüentemente a morte aparece como algo assustador, e dificilmente suspeitamos quanto de bem ela significa...
(Viktor E. Frankl, Psicoterapia e Humanismo, pg. 93)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Gangorra

Viver é brincar de gangorra,
Em baixo, em cima, em baixo, em cima,
Só em baixo, ou só em cima, acabou a brincadeira,
A essência é o movimento,
Para brincar, basta impulsionar para cima, para o céu,
Para o breve momento,
Já sabendo e aceitando a queda,
O chão.

?
,
O desejo, a força,
Em cima, em baixo, em cima, em baixo.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A vida é uma merda maravilhosa!

Eu sou o tipo de maluco que tenta traduzir em palavras tudo o que vive. É como um esporte, do qual sou amador. Por isso leio muito. Para admirar os craques. Como um peladeiro que quer ver o Neymar jogar. Ou um “tenista” que não perde uma partida dos top ten.

Toda segunda-feira espero pelos textos de dois ídolos meus, craques das letras em plena atividade. A Eliane Brum publica uma coluna surpreendente toda segunda-feira no site da revista Época. O Gustavo Poli

– bem, o Gustavo Poli prometeu publicar toda segunda-feira durante o Brasileirão 2011 uma coluna no seu blog. Com texto de profissional, ele deixa escapar lances de amador. Faz promessas. Publica a coluna de segunda na terça ou na quarta. Em uma semana sem inspiração, fez um texto básico, uma versão light da sua coluna, só pra cumprir tabela. Enfim, é divertido ver um craque enrolado nessas tramas de amador.

Hoje, terça-feira, ainda sem o texto semanal do Gustavo Poli, lembrei que uma vez ele twittou a frase “promessa é dívida” para divulgar uma coluna que tinha sido publicada nos acréscimos do segundo tempo. Imediatamente pensei: “Promessa é dúvida”. E achei a frase bem bonita e verdadeira. Botei no Google, entre aspas. Fiquei um pouco decepcionado, mas não me surpreendi: 23.200 resultados para a frase “Promessa é dúvida”. Não é tanto assim, se compararmos com os 912.000 resultados para “promessa é dívida”.

Uma das diversões do escritor, profissional ou amador, é achar a frase. Não qualquer frase. Mas a frase. A frase exata que berre em silêncio o que o escritor quer dizer. Pois eu criei (criei?) uma variação moderna desse jogo.

O escritor fica do seu jeito habitual. Pensando, pensando em uma coisa por muito tempo. Depois mais um tempão tentando enfiar todo o pensamento em uma frase. E depois ajeitando a frase. Quando não desiste e encontra seu “eureka!”, vai no Google, escreve a frase entre parênteses, e descobre o seu grau de originalidade.

Mais tarde, nesta mesma terça-feira, estava pensando na coluna “Nada é só bom”, da Eliane Brum. (“Nada é só bom”, 12.400 resultados no Google, em grande parte provocados pela coluna.) Mas eu não pensava na frase, e sim no sentido da frase e da coluna. Muitas pessoas se tornam extremamente infelizes ao procurar uma vida feliz. Isso porque entendem que felicidade é uma vida perfeita, sem dor ou sofrimento. E não podem ser feliz porque para excluir a dor tiveram de excluir a própria vida. Para viver – e ser de algum modo feliz – é preciso ter coragem de encarar a imperfeição, a dor e os sofrimentos que vierem.

Ia mais ou menos pensando assim, quando me veio a frase: “A vida é uma merda maravilhosa”. Dois resultados no Google. O primeiro dá num tal de Hi5 que pede adesão. Acima da ficha de adesão uma propaganda que garante seu site na primeira página dos buscadores em dois dias. Suspeito. Não aderi. O segundo resultado, surpresa. Um conto sobre a tristeza da ausência de vida na vida: Mais adiante, ele chora, de Felipe S. “A vida é uma merda maravilhosa!”, frase que me levou ao conto, não estava no conto, mas em um comentário.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Teoria da conspiraçao

As teorias da conspiração geralmente nos agradam. Porque é nosso jeito natural de pensar.

Natural, mas, acredito, errado. A realidade não é o resultado de conspirações. Claro, na realidade há conspirações (geralmente contraconspirações, propostas por quem acredita na teoria da conspiração). Mas as conspirações não funcionam - a realidade simplesmente não se deixa comandar pelos planos dos conspiradores.

Karl Popper é o filósofo que estudou, criticou e chamou a atenção para os tristes caminhos que o homem tomou por acreditar em conspirações.

Veja um texto dele sobre teoria da conspiração:

Há uma concepção filosófica da vida que é muito influente e segundo a qual alguém tem de ser responsável quando algo ruim (ou algo extremamente indesejável) acontece neste mundo: alguém deve tê-lo feito, e intencionalmente. Essa concepção é bastante antiga. Em Homero, o ciúme e a ira dos deuses são responsáveis pela maioria dos eventos terríveis que ocorreram antes de Tróia e na própria cidade; e Posídon foi o responsável pelos errores de Odisseu. Mais tarde, no pensamento cristão, o Diabo é responsável pelo mal. E no marxismo vulgar é a conspiração de capitalistas gananciosos que impede a chegada do socialismo e o estabelecimento do reino dos céus na terra.

A teoria de que a guerra, a pobreza e o desemprego são as conseqüências de más intenções e planos sinistros é parte do senso comum, mas é não-crítica. A essa teoria não-crítica do senso comum dei o nome de teoria da conspiração da sociedade. (Também se poderia falar de teoria da conspiração do mundo: basta pensar no Zeus lançador de raios.) A teoria é muito difundida e, como busca por um bode expiatório, provocou perseguições e sofrimentos horríveis.

Um traço importante da teoria da conspiração da sociedade é que ela instiga conspirações reais. Mas um exame crítico mostra que conspirações dificilmente chegam a atingir seu objetivo. Lênin, que defendia a teoria da conspiração, foi um conspirador; como também Mussoline e Hitler. Mas os objetivos de Lênin não foram realizados na Rússia; tampouco os de Mussoline ou Hitler foram realizados na Itália ou na Alemanha.

Todos foram conspiradores porque acreditaram acriticamente numa teoria da conspiração da sociedade.

É uma contribuição modesta, mas talvez não de todo insignificante para a filosofia, chamar a atenção para os erros da teoria da conspiração da sociedade. Além disso, essa contribuição leva à descoberta do grande significado de conseqüências não-intencionais das ações humanas para a sociedade, como também à proposta de ver a tarefa das ciências sociais teóricas na explicação de fenômenos sociais como conseqüências não-intencionais de nossas ações.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O Olho da Rua, de Eliane Brum

O Olho da Rua, de Eliane Brum, não é apenas uma coletânea de reportagens, mas um livro coeso para ser lido do início ao fim, como um romance.

O livro começa com a espera do parto e termina com a  morte natural. No meio do caminho, guerra, asilo, desemprego, coragem, morte violenta, esperança, amor romântico e meditação. O leitor se encanta, se revolta, ri e chora – chora muito mais do que ri, não vou lhe enganar.

Um parágrafo da última reportagem faz referência à primeira:

Descubro então que a morte é um parto do lado avesso. E na Enfermaria são todas parteiras que, em vez de esperar o tempo de nascer, respeitam o tempo de morrer.

Com sua prosa poética, Eliane Brum revela a beleza presente em histórias reais. A gente desconfia que as pessoas de qualquer lugar, se olharmos bem, são feitas da mesma matéria dos personagens dos grandes romances, da nossa matéria humana. Mas Eliane Brum foi lá conferir, percebendo com todos os sentidos cada personagem, cada cenário. Para alcançar a realidade profunda dos outros que traduz em seus textos, a principal arma da repórter é o silêncio; um silêncio não só da voz, mas de si. E nos ensina a suprema importância de saber escutar:

O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que palavras escolhem, que entonação dão ao que falam e em que momentos se calam revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom, da espessura das palavras – e do silêncio.

Escutar é também não interromper as pessoas quando elas não falam na velocidade que a gente gostaria ou com a clareza que a gente desejaria e, principalmente, quando elas não dizem o que a gente pensava que diriam. Escutar é não induzir as pessoas a dizer o que gostaríamos que dissessem. A reportagem sempre fica melhor quando somos surpreendidos, quando ouvimos algo que não planejávamos. Escutar é esperar o tempo que cada um tem de falar – e de silenciar. Como repórter – e como gente –, eu sempre achei que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta.

São 10 reportagens feitas no período em que a escritora trabalhou como repórter especial da revista Época. Há ainda os textos de bastidores, que contam a história da contadora de histórias; seus erros, seus acertos, suas opiniões e sua aprendizagem pessoal e profissional. 

Abaixo um sumário do livro. Como isca, reproduzo um trecho de cada reportagem:

1. A floresta das parteiras – Conta a história das parteiras do Amapá:

Encarapitadas em barcos ou tateando caminhos com os pés, a índia Dorica, a cabocla Jovelina e a quilombola Rossilda são guias de uma viagem por mistérios antigos. Cruzam com Tereza e as parteiras indígenas do Oiapóque. Unidas todas elas pela trama de nascimentos inscritos na palma da mão. “Pegar menino é ter paciência”, recita a caripuna Maria dos Santos Maciel, a Dorica, a mais velha parteira do Amapá. Aos 96 anos, mais de 2 mil índios desembarcaram no mundo pelas suas mãos pequenas, quase de criança. Dorica – avó, mãe, madrinha de centenas de filhos de pegação – nem mesmo gostaria de possuir o dom. “O dom é assim, nasce com a gente. E não se pode dizer não”, explica. “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo.”

2. A guerra do começo do mundo – Cenário. Os muitos mundos de Roraima, com a guerra pela área da reserva indígena Raposa-Serra do Sol no centro.

O tuxaua de Uiramutã, Orlando da Silva, de 58 anos, confere a posição do inimigo pela janela. “Estou cercado”, constata. Da aldeia avista o quartel em construção, a cidade a sua porta. Um e outro, acredita, instalados com o objetivo de ficar no caminho da reconquista da terra. “Não tenho sossego. Se isso acontecer, voltaremos a ser escravos.” Ele sabe o que diz. Aos oito anos foi vendido pelo pai a um comprador de diamantes por cinco sacas de sal, uma enxada e um machado, um forno e uma espingarda. Só aos dezessete conseguiu romper o jugo e voltar. “Encontrei índios encachaçados, mulheres abusadas, forró o dia todo. Nenhuma roça, só meu povo trabalhando para o branco em troca de nada”, lembra. “A isso chamam de boa convivência entre índios e brancos.”

3. A casa de velhos – A vida dentro do asilo Casa São Luiz para Velhice, no Rio de Janeiro, habitado por 257 velhos divididos entre os que vivem em suítes particulares e os que ocupam as camas gratuitas dos dormitórios coletivos.

De repente eles chegaram lá, diante do portão de ferro da casa de velhos. A vida inteira espremida numa mala de mão. Deixaram para trás a longa teia de delicadezas, as décadas todas de embate entre anseio e possibilidade. A família, os móveis, a vizinhança, as ranhuras das paredes, um copo na pia, o desenho do corpo no colchão. Reduzidos a um único tempo verbal, o pretérito, com suspeito presente e um futuro que ninguém quer.

4. O homem-estatística – A história de Hustene Alves Pereira, um trabalhador a procura de emprego e de uma vida digna para os seus.

Hustene Alves Pereira ficou pobre quando descobriu que não poderia mais comprar Danoninho. Nem biscoito recheado, leite condensado, refrigerante, salsichas, margarina light. Entre ele e as promessas dos anúncios da televisão se instalara um abismo. Os produtos que durante décadas aprendeu a desejar de repente retornaram à sua essência de fumaça. Hustene ficou pobre no dia em que perdeu os símbolos de sua vida.

5. O Povo do Meio – A resistência do povo que vive à beira do Riozinho do Anfrísio, na Amazônia.

Raimundo Nonato da Silva não sabe quem é Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os dois Silvas, o presidente do Brasil e o brasileiro sem presidente, há um vasto mundo no qual se chamar Raimundo nem é rima nem é solução. Ele vive num país desconhecido do próprio Brasil, onde a maioria dos homens atende por Raimundo. Sua república fica no coração da Amazônia e pertence a uma região cujo nome parece ter saído do universo mitológico de J.R.R. Tolkien: Terra do Meio. É um país invisível porque 99% dos habitantes não têm documentos. Oficialmente, os Raimundos e Raimundas não existem. Mas estão lá, insistem em existir, plenos de paradoxos. São analfabetos ou , como eles dizem, “cegos”. Nunca votaram porque fantasmas só se tornam eleitores em currais de fim de mundo. E eles vivem um pouco mais além do fim do mundo. O Povo do Meio pode desaparecer antes que o país oficial se aperceba dele. Como a floresta em que vive, e com a qual se confunde, está ameaçado de extinção.

6. Expectativa de vida: vinte anos

6.1 O sobrevivente – A história de Serginho Fortalece, único sobrevivente entre os 17 meninos que aparecem no documentário Falcão – Meninos do Tráfico.

No princípio era Gêneses. O nome foi escolha da mãe, a costureira Raimunda, testemunha-de-jeová. O pai, Sérgio, traficante, a enganou e impôs outro no cartório: o seu. Acrescentou, ainda, um Cláudio. Sérgio Cláudio nasceu de sete meses “porque o pai era viciado”, um menino minúsculo com orelhas enormes. Seu berço era uma caixa de sapatos. Aos dez anos, “entrou para o caminho errado” e ganhou um “vulgo”: Fortalece. Foi seu segundo batismo. Sérgio Cláudo de Oliveira Teixeira, o Serginho Fortalece, permaneceu invisível por 21 anos. Emergiu há uma semana como único sobrevivente do documentário Falcão – Meninos do Tráfico. Único vivo num grupo de dezessete, ele se tornou visível porque contrariou as estatísticas. A regra para adolescentes como ele é morrer – e não viver.

6.2 Mães vivas de uma geração morta – As histórias e os testemunhos das mães que sobrevivem a morte de seus filhos que entram meninos no negócio do tráfico.

Uma geração de brasileiros tem sido apagada do futuro à bala. As cenas do extermínio foram exibidas no documentário Falcão, do rapper MV Bill e do produtor Celso Athayde, da Central Única das Favelas (Cufa). Não chocou o país pela novidade, mas pela crueza. Dos dezessete garotos do filme, só um está vivo. Falcão provou que nas favelas brasileiras – e não apenas no Rio de Janeiro – a expectativa de vida dos meninos do tráfico é de vinte anos. São executados antes de se tornar adultos. Selvina, Maria, Enilda, Josefa, Eva, Graça, Helena e Francisca são as pietás das periferias. As mães vivas da geração morta.

7. No Brasil do Zé Capeta – A incrível história da corrida do ouro no garimpo de Eldorado do Juma, na Amazônia.

No Eldorado do Juma, a maior corrida do ouro desde Serra Pelada, o patrão se chama Zé Capeta. Mas só fala em Deus. Um dos homens mais abençoados pelo metal é um crente chamado Ainda Tem, mas ele acredita ter sido vítima do diabo. Na cidade de Apuí, o prefeito esbraveja contra o garimpo, mas o vice abandonou a prefeitura e amealhou mais de dois quilos de ouro com os dois pés enfiados na lama. Zé da Balsa e Mariano descobriram a grota rica, mas foram arrancados dela no cano da espingarda. A igreja se esvaziou de fiéis, mas a dama mais distinta da cidade inaugurou seu cabaré com um leilão de maninas. Às margens do rio Juma as prostitutas cobram em gramas dourados, mas sentem prazer e até se apaixonam. Parece ficção de Dias Gomes, mas é tudo real. E se passa agora no sul do Amazonas.

8. Um país chamado Brasilândia –  Histórias de amor estão no centro da vida na Brasilândia, vila pobre de 250 mil habitantes na zona norte de São Paulo.

Na Brasilândia se ama muito, com a intensidade de quem coloca o amor acima de todas as aspirações. Não há dilemas classemedianos do tipo - “e a minha carreira?”. Ama-se desbragadamente. Vale para as pessoas – vale para os cães.

9. O inimigo sou eu – A repórter participa de um curso de meditação vipássana em um retiro na região serrana do Rio de Janeiro e enfrenta uma batalha no interior do próprio corpo,.

Este é apenas o relato de uma viagem para um lugar bem exótico – o meu corpo. Você poderia estar lendo sobre uma circunavegação na Antártica ou a escalada da parede sul do Aconcágua. Mas esta é uma expedição de dez dias, mais de cem horas de olhos fechados, na mesma posição, sem sair do lugar e sempre para dentro. Ao avesso de qualquer outra aventura, quanto mais longe, mais perto estava de mim.

Neste mundo em que todas as geografias já foram devassadas – e a maioria delas devastada – , talvez este seja um desafio mais real.

10. Vida até o fim 
“O sofrimento só é intolerável se ninguém cuida”, Cicely Saunders, médica que criou o tratamento chamado de “cuidados paliativos”.

10.1 A enfermaria entre a vida e a morte – A repórter conta histórias de pacientes na Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo; e mostra a forma como a medicina paliativa trata o doente incurável até o fim da vida.

De repente, João Barbosa de Lima começou a rir às gargalhadas. Seu corpo miúdo, devastado pelo câncer, se sacudia todo na cama do hospital. Depois de meses sem um sorriso, o iceberg que comprimia seu riso se desprendia dele. “Essa doença me deixou de um jeito que filho me beijava, neto me beijava, mulher me beijava e eu não conseguia sorrir. Estava trancado por dentro. Então, meu filho imitou o Costinha, vejam só, o Costinha, e destrancou meu riso.” Banal assim. Grande assim. Daquele dia em diante João ria sozinho na cama do hospital. Puxava um lenço encarnado para enxugar as lágrimas dos olhos. E continuou rindo quando foi para casa. E nem queria rir tanto porque lhe doía por dentro. Mas não segurava mais. João sabia que morreria, mas tinha descoberto também o que o fazia viver. A família ao redor, esse riso à toa, a mulher de uma vida, a vida vivida.

10.2 A mulher que alimentava – A repórter acompanha os últimos 115 dias de vida de Ailce, paciente terminal de câncer, para ouvir a história dessa mulher comum, merendeira aposentada, a partir da perspectiva da morte.

“É tão estranho”, ela diz. “Eu passei a vida inteira batendo ponto, com horário pra tudo. Quando me aposentei, arranquei o relógio do pulso e joguei fora. Finalmente eu seria livre. Aí apareceu essa doença. Quando tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado.”

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Os Lobos da minha infância


Não sei como é com as outras crianças, mas eu gostava quando os Lobos vinham na minha casa. Ou quando me carregavam para passear.

Nunca os vi brigar ou reclamar a sério da vida, do país ou dos outros. Eles habitavam o bom humor. Sabiam na prática que o sentido da vida estava nas pausas: na roda de amigos, na piada, no sorriso, na brincadeira, no fim de semana, na confraternização.

A gente enfrenta as dificuldades e os sofrimentos da vida para viver os pequenos acontecimentos. Não faz sentido abdicar desses intervalos, ou enchê-los de aporrinhações. Mas a maioria das pessoas, depois eu aprenderia, não é assim.

Era essa diferença de atitude perante a vida que tornava tão engraçada a brincadeira de dividir os adultos da família entre os Lobos (irmãos e irmãs) e os "intrusos" (cunhados e cunhadas).

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A nova era dos répteis



Estou tentando virar um réptil. Um jacaré, uma cobra, um lagarto ou uma tartaruga. Você já viu um réptil? Quase sempre parado. Independente. Frio. Sozinho. Silencioso. Fechado dentro de si.

Olho em volta e me sinto em casa: um mundo de adultos répteis, um pouco desajeitados com seus filhos mamíferos. Quando têm filhos.

Mas ainda não completei a mutação, o mamífero dentro de mim ainda resiste. Precisa de movimento, de bando, de contato, de ajudar alguns e depender de muitos.

E sabe o que é pior? Estou cheio de dores nas costas e no pescoço. Um mamífero não vira réptil impunemente.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Uma duas, de Eliane Brum

Uma duas, de Eliane Brum, é uma saga familiar. Uma saga familiar com a estranheza do nosso tempo. Não há irmãos, irmãs, tios, primos, romances, nem grandes acontecimentos. Apenas uma mãe e uma filha, e uma longa história de crimes silenciosos ocultos entre paredes.

Mas por que filha e mãe derramam na tela do computador e em um caderno sem pauta seu sangue, seu mijo e seu ódio? Fatos e pensamentos que deveriam estar escondidos. Duas vidas miseráveis que não interessam a ninguém. Duas vidas que expõem a podridão que diariamente tentamos disfarçar debaixo da superfície limpa e cheirosa de nossas máscaras.

Talvez porque elas (como nós) desejem se salvar. Encontrar um sentido para o mal-entendido que foi suas vidas. E se encontrar. Tomar posse de sua existência. Antes de morrer. Ou para viver.

Com as histórias de Laura e Maria Lucia, Eliane Brum escreveu um livro denso com 175 páginas essenciais. Cada frase curta vai além dela mesma e se revela em novos significados até o fim do livro. Uma duas é para ser lido e relido ao longo da vida.

É um mergulho (na piscina, na privada, na carne, no útero). A experiência de ler Uma duas é como um afogamento. Nossa cabeça é empurrada para o fundo onde não podemos respirar. Onde há dor, medo e desejo. Mas antes que tudo se apague, somos puxado pelos cabelos de volta à superfície.

Podem ficar tranquilos, tem vontade de gritar. Minha tragédia não vai denunciar ninguém. Eu apenas preciso chegar em casa e tomar um banho. E então, pronto, estaremos todos salvos. (pg. 25)

Acho que não tenho alma alguma. Se tenho, a carne está colada nela e não vai deixá-la ir sem antes arrancar um pedaço. (pg. 140)

Eu a salvei, mas a salvei de mim mesma. Fui ao mesmo tempo sua assassina e sua heroína. E acredito que é isso que todas as mães são em alguma medida. (pg. 144)

Quero agradecer a este caderno por não ter linhas. Se eu tivesse sabido a tempo que era tão simples, que existiam cadernos sem pauta onde cabe tudo, talvez eu pudesse ter tido uma outra vida. (pg. 145)

Quando ela cessar de respirar, será como mágica ao contrário (pg 152)


E o que há ali é uma filha e uma mãe na antessala da morte que acabaram de descobrir que tudo foi um grande mal-entendido. E agora o tempo acabou. (pg. 153)

Fico fascinada com a quantidade de horror que a normalidade nos assegura dia após dia. (pg. 161)


Tenha uma boa vida, ela diz. Ter uma vida já me basta, quero dizer. (pg. 172)

É mais um dia normal. E ela não é mais ou menos normal do que os outros todos. Sabe disso agora. É o segredo deles. Dela também, agora que consegue se camuflar na luz. (pg. 173)


Sabe agora que vai sobreviver. A vida só é possível na superfície. Boa semana, a moça ainda diz. Para você também. (Pg. 174)

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Meia-noite em Paris, de Woody Allen

Woody Allen está no auge. Nos últimos anos, tenho ido ao cinema ver filmes excelentes dele. Scoop – o grande furo (2006); O sonho de Cassandra (2007); Vicky, Cristina, Barcelona (2008); Tudo pode dar certo (2009); mas talvez Meia-noite em Paris, deste ano, seja o melhor.

Um homem que sonha é um inconformado; às vezes inseguro diante da realidade, mas um inconformado. Gil Pender é esse tipo. Insatisfeito com seu trabalho e cercado por pessoas que não o entendem, ele encontra na Paris de hoje um calhambeque que toda meia-noite o leva à Paris dos anos 20, onde se encontra em festas e bares com seus ídolos – Cole Poter, Ernest Hemingway, Buñuel, Dali, Pablo Picasso.

As férias em Paris com a noiva e os sogros se divide entre fantasia e realidade, passado e presente. Entre o que Gil é e sonha, e o que ele aceita e vive. Mas fantasia não é só fuga, ela lentamente move a realidade. Quem ousou sonhar não aceita mais qualquer presente.

E os sonhos também se esgotam. Chega o tempo em que a fantasia já não é o suficiente. Em suas aventuras noturnas, Gil tem uma pequena iluminação: o passado não foi tão perfeito para quem o viveu na realidade presente. Se o Gil Pender real quer sonhar, o sonhador vai querer acordar e (mesmo com medo da rejeição, do fracasso, da dor, da morte) arriscar a viver. Neste ponto insondável – a vida real – o filme não é mais possível. Toda a arte se cala.

Pender – Achei no dictionary.com que pend, em inglês, significa to remain undecided or unsettled; to hang. Daí pêndulo. O personagem, Gil Pender, é esse pêndulo indeciso, que movimenta o filme suavemente de lá pra cá, entre uma Paris diurna com sua noiva, os amigos da noiva e seus sogros pragmáticos, e a Paris noturna de sonhos com os artistas que fizeram dela uma festa nos anos 20. Pender também lembra tender, uma palavra mais comum na língua inglesa, que significa afetuoso, delicado, sentimental. Gil Pender também é assim, justamente por pender, por estar indeciso, inseguro, fora de lugar; e é esta característica que cativa Adriana, uma linda mulher do passado, amada por grandes artistas como Picasso, Hemingway e Matisse.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Breve história de quase tudo, de Bill Bryson, e Alex no país dos números, de Alex Bellos

Ciências e matemática. Na escola, aprendemos alguns conteúdos dessas matérias como ferramentas para resolver questões que podem cair na prova. O fascínio, quase sempre, fica de fora. Agora o encanto da matemática e das ciências pode ser encontrado em dois livros rigorosos e divertidos: Alex no país do números, de Alex Bellos, sobre matemática, e Breve história de quase tudo, de Bill Bryson, sobre ciências.

Os dois autores, egressos do jornalismo, dedicaram vários anos a pesquisas e entrevistas antes de escrever os livros. Além disso, o cuidado com a forma na apresentação do conteúdo os aproxima da literatura.

Bill Bryson e Alex Bellos conquistam o interesse do leitor humanizando os seus temas. As ciências e a matemática são vistas não como um conjunto de conceitos prontos, mas por meio das dificuldades, das conquistas, dos desafios e dos limites dos homens que construíram o conhecimento que temos hoje sobre o mundo e sobre os números.

A cada assunto abordado, os autores viajam a procura de fatos e personagens curiosos.

É deste modo que para falar de vulcões Bill Bryson nos apresenta Paul Doss, geólogo do Parque Nacional de Yellowstones, nos EUA, que é na realidade a imensa cratera de um supervulcão, o maior vulcão ativo do mundo.

Para falar de aritmética, Alex Bellos vai ao Japão conhecer Yugi Miyamoto, dono de um clube de ábaco (soroban). Depois viaja à Universidade de Leipzig para assistir à Copa Mundial de Cálculo Mental, que acontece a cada dois anos desde 2004.

Os dois escritores desenvolvem estratégias interessantes para tornar os temas acessíveis ao leitor comum, que não está necessariamente envolvido com ciência ou matemática. Bill Bryson usa comparações para termos noção das medidas, que nas ciências geralmente fogem da nossa percepção normal:
Você também logo perceberá que nenhum dos diagramas do sistema solar foi desenhado em escala, ainda que remotamente. A maioria das ilustrações de sala de aula mostra os planetas um após os outros, com pequenos intervalos - os gigantes exteriores chegam a jogar sombra uns sobre os outros em muitos desenhos. Entretanto, esse é um engano necessário para que possam ser colocados na mesma folha de papel. Netuno não está só um tiquinho além de Júpiter: está muito além de Júpiter - cinco vezes mais longe do que Júpiter está de nós, tão longe que recebe somente 3% da luz solar recebida por Júpiter.


São tamanhas as distâncias que é impossível, em termos práticos, desenhar o sistema solar em escala. Mesmo que você acrescentasse uma enorme folha dobrável aos livros didáticos ou usasse um papelão grande, não chegaria nem perto. Num diagrama do sistema solar em escala, com a terra reduzida ao diâmetro aproximado de uma ervilha, Júpiter estaria a mais de trezentos metros e Plutão estaria a 2,5 quilômetros de distância (e teria o tamanho aproximado de uma bactéria, de modo que você nem conseguiria vê-lo). Na mesma escala, a Próxima Centauro, a estrela mais próxima, estaria a quase mil quilômetros de distância. Ainda que você encolhesse tudo até Júpiter ficar do tamanho do ponto final da fraze, e Plutão não maior que uma molécula, Plutão continuaria a mais de dez metros de distância.
(pg. 36)

Talvez uma forma mais eficaz de visualizar quão recentes somos como parte desse quadro de 4,5 bilhões de anos seja você abrir seus braços ao máximo e imaginar aquela extensão como toda a história da Terra. Nessa escala, de acordo com John McPhee, em Basin and range (Bacia e cadeia de montanhas), a distância das pontas dos dedos de uma mão até o pulso da outra é o Pré-Cambriano. Toda a vida complexa está em uma mão, “e de um só golpe, com uma lixa de unha de granulação média, você pode erradicar a história humana.”
(pg. 343)

Alex Bellos, embora aborde todos os temas da matemática que já vimos na escola, os trata de uma maneira lúdica. Lendo o livro, você se encanta com a incrível história de Tartaglia, o matemático que descobriu como resolver equações cúbicas no século XVI e não revelava o segredo pra ninguém, pois a conquista do mundo cúbico por um profissional das equações o elevava acima de seus concorrentes e permitia que cobrasse preços mais altos. Aprende a fazer um tetraedro dobrando dois cartões de visitas. Conhece as propriedades do quadrado mágico do pintor Albrecht Dürer, que serviu de base para o quadrado de Gaudi, que enfeita a lateral da catedral da Sagrada Família em Barcelona. E descobre o fascínio exercido pelas progressões geométricas:


"...Quando se multiplica qualquer número por si mesmo algumas vezes, o resultado logo chega a altas quantidades que desafiam a intuição.


Mesmo ao se multiplicar o menor número possível, 2, por si mesmo, o resultado logo sobe aos céus num ritmo alucinante. Coloque um grão de trigo num tabuleiro de xadrês. Ponha dois grãos no quadrado adjacente e depois comece a encher o resto do tabuleiro dobrando o número de grãos de trigo a cada quadrado. Quantos grãos de trigo seriam necessários para encher todo o tabuleiro? Alguns caminhões, ou talvez um contêiner? São 64 quadrados num tabuleiro de xadrês, por isso, a duplicação será efetuada 63 vezes, ou seja, o 2 será multiplicado por si mesmo 63 vezes, ou 263. Em grãos, esse número corresponde a mais ou menos cem vezes mais do que a produção anual de trigo no mundo hoje. Ou, se considerarmos de outra forma, se você começar a contar um grão de trigo por segundo no momento do Big Bang, há 13 bilhões e tantos anos, não teria contado nem até um décimo de 263 até agora."
O acaso é ótimo – O capítulo sobre probabilidade é o mais empolgante na viagem de Alex Bellos pelo mundo maravilhoso da matemática. Não é o maior capítulo do livro por acaso. O autor conta a história da probabilidade, que começa no século XVI com O livro dos jogos de azar, do matemático e jogador de dados e xadrez Girolamo Cardano. Os conceitos básicos da probabilidade foram desenvolvidos por Blaise Pascal no século XVII para responder a duas perguntas sobre jogos feitas por Chevalier de Mére, escritor bon vivant e frequentador regular das mesas de dados e dos salões da moda em Paris.

Depois do passeio pela história e de ensinar os conceitos básicos da probabilidade, Alex Bellos vai a um hotel cassino em Reno, faz uma breve introdução sobre o jogo na roleta e conversa com o matemático que estabelece as chaces de metade dos caça-níqueis do mundo, para explicar como funcionam essas máquinas que rendem 25 bilhões de dólares por ano nos Estados Unidos. Fala sobre as estratégias de aposta e conta as histórias de matemáticos que conseguiram ganhar muito dinheiro jogando cientificamente nos cassinos e na loteria. Um deles é Ed Thorp, que depois de ganhar algum dinheiro no blackjack (vinte e um), ficou milionário usando seu conhecimento de probabilidade para transformar a maneira de investir nos mercados de capitais no início dos anos 70.

Alex Bellos também mostra porque temos tanta dificuldade para entender a aleatoriedade, a ponto de enxergar incríveis coincidências em fatos comuns. A probabilidade de pelo menos duas pessoas fazerem aniversário no mesmo dia num grupo de 23 pessoas é maior do que a de não haver nenhuma coincidência de aniversários. Por outro lado, preciso de um grupo de 253 pessoas (bem maior do que a metade dos 365 dias do ano) para que a probabilidade de alguém fazer anos no dia do meu aniversário seja maior do que 50 por cento. Outro fato curioso que demonstra nossa incapacidade para entender a aleatoriedade foi a chuva de reclamações que a Apple recebeu de que a função shuffle (embaralhar) do Ipod, que executa as músicas do aparelho numa ordem aleatória, estava privilegiando certas bandas. A escolha aleatória, justamente porque não segue qualquer padrão, teria que “privilegiar” certas bandas em detrimento de outras. Em resposta à grita, Steve Jobs foi absolutamente sério ao responder: “Estamos tornando [a função embaralhar] menos aleatória, para que pareça mais aleatóia.”

A aleatoriedade não é lisa, distribuída por igual (2º retângulo). Ela cria áreas vazias e áreas sobrepostas (1º retângulo).

Tetraedro feio com dois cartões de visita.
O livro também ensina a fazer o cubo e outras figuras,
mas eu não tinha mais cartões de visita.

No quadrado de Dürer, todas as colunas linhas e diagonais somam 34. Nos quadrados de baixo ao centro, vê-se o ano em que o pintor fez a gravura, 1514.
Leia no Google Books um pouco de Breve história de quase tudo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A respeito da comemoração da morte de Osama

Não se deve comemorar a morte. Vitória é um mundo sem terrorismo, não a morte de um terrorista.

O raciocínio por trás da comemoração da morte de um terrorista ou de um assassino é semelhante ao raciocínio do terrorista ou do assassino. É um raciocínio simples: a América é má, matem-se os americanos; Israel é mau, matem-se os israelitas; os terroristas são maus, matem-se os terroristas; os assassinos são maus, matem-se os assassinos. E iludem-se que com isso resolvem o problema. Mata-se um Rei, outro entra no lugar; mata-se um terrorista, um assassino, um americano, um israelita, outros tomarão seus lugares, quem sabe infelizmente mais radicais por força da violência.

Enfim, não se deve combater o mal com o mal, ou a violência com mais violência. Uma ideia simples defendida vigorosamente por Sócrates, Jesus Cristo e Tolstoi (esses os que me vêm a mente). Mas não revidar o mal com o mal é uma ideia com a qual dificilmente o homem concorda. Há 2.400 anos, Sócrates reconhecia que poucos, tanto em sua época quanto no futuro, dificilmente apoiariam esta ideia:

"Então não devemos nem ser injustos com quem foi conosco injusto, nem causar o mal a quem quer que seja, a despeito do que possa ter feito conosco. E cuida, Críton, ao concordares com isso em não concordares com algo em que não acreditas, pois estou ciente de que são poucos os que acreditam ou que algum dia acreditarão nisso."

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Em defesa de Deus: o que a religião realmente significa, de KarenArmstrong

Hoje em dia, muita gente pensa que ser religioso é acreditar em fatos históricos absurdos. Moisés abrindo o Mar Vermelho para a passagem do povo hebreu. Deus confeccionando Eva a partir de uma costela de Adão, ou tirando o mundo do Caos em seis dias. A virgem Maria concebendo o filho de Deus. Jesus transformando água em vinho, multiplicando o pão, caminhando sobre o mar, ressuscitando e subindo ao Céu. Na era moderna, positivista e racionalista, os rituais e a disciplina religiosa foram colocados à margem do que foi considerado como a boa educação. Perdemos a capacidade de ler um texto religioso, confundindo-o com os nossos textos históricos e científicos, e criticando-os por não terem qualidades que nunca pretenderam ter. Não surpreende que hoje, embora já desiludidos do positivismo, o nosso conhecimento e, principalmente, nossa compreensão da religião seja precária e distorcida. Assim, para explicar o que a religião realmente significa, Karen Armstrong, em seu livro Em defesa de Deus, percorre a história da religião, da teologia, da ciência, do ateísmo, e do fundamentalismo.

A era moderna, que teve muitos acertos, também cometeu muitos erros. Um deles foi não entender muito bem o homem e seu anseio legítimo de transcendência e sentido. O homem sem religião, fenômeno que nasceu no século XVIII, tem uma história. Já atravessou muitos descaminhos: da certeza na realização individual ao niilismo desesperado dos poetas românticos; da certeza na evolução histórica a caminho do paraíso comunista à revelação do que realmente eram as sociedades comunistas; da certeza na apoteose de grupos étnicos e nacionais ao apocalipse dos massacres, das guerras mundiais e do terrorismo.

Com as velhas certezas despedaçadas no chão juntamente com seus ídolos, vivemos em uma época de desespero, em que pode renascer a leve esperança religiosa ou novas certezas esmagadoras (que podem vir cobertas em trapos religiosos, científicos, políticos, nacionalistas, étnicos, ou filosóficos).

Depois de estudar profundamente a história das diversas religiões, Karen Armstrong percebeu que religião tinha pouco a ver com pensamento exato a respeito de acontecimentos históricos ou fenômenos naturais. O significado pré-moderno das palavras crença e fé é confiar, amar, entregar o coração. Mas a mentalidade moderna superestimou a realidade, o prático, o que pode ser utilizado, em detrimento da fantasia, da poesia. Em uma época assim, é sinal da força e da importância da religião que as pessoas religiosas, para não abandonar sua prática, tenham acreditado literalmente nos símbolos da sua religião e tentado justificar racionalmente e pragmaticamente a poesia religiosa.

Religião é principalmente prática correta (ortopraxia) e não pensamento correto (ortodoxia). Participação em rituais mitológicos, orações, e verdades simbólicas. A religião é uma forma de entrar em contato com “algo” que está além do tempo e do espaço, e portanto além da linguagem e do pensamento humano, mas que dá sentido e valor à vida. A religião, para falar de “algo” que transcende o que nossa mente pode perceber, só pode falar por meio de símbolos e mitos. E, nesse sentido, não pode haver o símbolo e o mito certo, porque todos são necessariamente imperfeitos.

O símbolo correto é todo aquele capaz de transformar o religioso em um ser humano melhor, mais caridoso, mais integrado à vida, ao mundo e aos outros seres humanos. Karen Armstrong também percebeu que no coração de todas as grandes religiões está o que chamamos de regra de ouro, em sua formulação negativa ou positiva: não faça ao outro o que você não gostaria que lhe fizessem, e trata o próximo do mesmo modo que você gostaria de ser tratado. Para isso, é preciso que você olhe dentro de si e perceba o que faz você sofrer, e também é preciso imaginação, para se colocar na posição do outro.

Leia aqui trechos do livro Em defesa de Deus:

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Compromisso com a compaixão (Charter for compassion)

O princípio da compaixão está no coração de todas as tradições religiosas, éticas e espirituais, sempre nos chamando a tratar os outros do mesmo modo que gostaríamos de ser tratados. A compaixão nos impele a trabalhar incansavelmente para aliviar o sofrimento do próximo, para destronar o eu do centro do nosso mundo e colocar o outro neste lugar, e para honrar a santidade inviolável de cada ser humano, tratando a todos, sem exceção, com justiça, equidade e respeito.

Também é necessário nos controlarmos, tanto na vida privada como na pública, para não infligir sofrimento. Agir ou falar agressivamente, explorar ou negar direitos básicos a qualquer ser humano, e incitar o ódio denegrindo os outros – mesmo nossos inimigos, tudo isso nega nossa humanidade em comum. Reconhecemos que temos falhado em viver com compaixão e alguns têm aumentado a miséria humana em nome da religião.

Portanto, convocamos todos os homens e todas as mulheres: a reconduzir a compaixão ao centro da moral e da religião; a retornar ao antigo princípio de que toda interpretação das escrituras que gere violência, ódio ou desprezo é ilegítima; a garantir que os jovens recebam informações precisas e respeitosas sobre outras tradições, religiões e culturas; a apreciar a diversidade cultural e religiosa; e a desenvolver empatia pelo sofrimento de todos os seres humanos, mesmo daqueles considerados inimigos.

Precisamos urgentemente fazer da compaixão uma força clara e dinâmica em nosso mundo polarizado. Enraizada na determinação de transcender o egoísmo, a compaixão pode derrubar barreiras políticas, dogmáticas, ideológicas e religiosas. Nascida da nossa profunda interdependência, a compaixão é essencial para as relações humanas. É o caminho da iluminação, e indispensável para a criação de uma economia justa e de uma comunidade global pacífica.

IMPORTANTE : O texto acima é minha tradução para o manifesto global Charter for compassion. Que tal entrar no site http://charterforcompassion.org e se envolver com este movimento para reconduzir a compaixão ao centro do pensamento e da ação religiosa, moral e política.

terça-feira, 15 de março de 2011

Dois guarda-chuvas num dia de sol

Estou andando na rua com dois guarda-chuvas enormes fechados, mas não sou vendedor de guarda-chuvas.

Todo dia vou ao trabalho a pé. Ando um quilômetro na ida, outro na volta, e ainda saio à rua na hora do almoço. Hoje de manhã, quando comecei a caminhar, percebi que estava nublado, podia chover. E mesmo o guarda-chuva que costumo deixar no trabalho, estava em casa.

Lembrei de meus filhinhos, que muito iam se divertir com a pequena liberdade de ir sozinhos entregar o guarda-chuva ao papai na portaria do prédio. Liguei pra casa e pedi que a empregada deixasse os dois descerem no elevador com um guarda-chuva grande, que eu estaria esperando em baixo.

Parei na frente do elevador olhando aquela luzinha ir pegar o Rafael, de 8 anos, e o Rodrigo, de 6 anos, no 6º andar. Quando o elevador chegou, o Rafael me entregou um guarda-chuva. Mas o Rodrigo também tinha um guarda-chuva para me dar.
Peguei o guarda-chuva do Rafael, “vou levar este". Mas o Rodrigo insistiu, me estendendo o seu : “por favor, papai, leva este”. Fiquei ali, na porta do elevador, com dois grandes guarda-chuvas na mão sem saber o que fazer. O mais velho tentou argumentar: “este é melhor...o cabo, dá pra pendurar”.

Olhei para os meus dois filhos, e reconheci ali, pelo olhar, cada um esperando minha decisão. O Rodrigo transparente, mendicante. O Rafael sério, firme, se segurando: “deixa o papai decidir”.

A expectativa era grande, o elevador esperava, e eu não sabia o que fazer. Qualquer guarda-chuva que eu pegasse, um sairia contente, gabão, e o outro frustrado, irritado. Resultado: briga. Olhei novamente para os dois, que aguardavam a sentença. Eles não esperavam minha decisão por um guarda-chuva, mas que filho eu ia escolher.

Finalmente, percebi que podia levar os dois: “vou levar os dois; um eu deixo no trabalho e o outro trago de volta”.

Rafael e Rodrigo subiram contentes para o apartamento. Eu estou indo ao trabalho, um pouco desconfortável, mas também contente de levar meus dois filhos comigo. Paz.

Por enquanto.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Songs Around the World, DVD/CD de Playing for Change


A primeira faixa/filme do DVD Songs Around the World é significativa. Em Santa Mônica, na rua, Rodger Ridley inicia sozinho com seu violão o clássico do blues Stand By Me, com a seguinte introdução:

Rodger Ridley
"(fala) This song says: No matter who you are,
No matter where you go in your life
At some point you're going to need
Somebody to stand by you
(canta)
Oh yeah! Oh my darlin' Stand by me!
No matter who you are,
No matter where you go in life
You gon need somebody, to stand by you
No matter how much money you got
Or the friends you got,
You gon need somebody, to stand by you"

Ouvindo Rodger Ridley pelo fone de ouvido, Grandpa Elliott entra na música com sua voz e sua gaita em Nova Orleans, Louisiana.
Grandpa Elliott
Também se unem harmoniosamente ao Stand By Me de Ridley, vozes, corais, tambores, violões, violoncelos e outros instrumentos, numa grande orquestra de músicos tocando e cantando em paisagens espalhadas pelo planeta Terra. Quando Ridley termina sua interpretação para o público ocasional da rua, ele não está mais sozinho. Embora Ridley e os demais músicos não se conheçam e tenham executado sua parte na música em tempos e lugares distantes, o filme uniu numa só performance suas imagens, seus sons e sua emoção. O resultado é irresistível. Pois reúne, com excelente qualidade de som e imagem, a emoção de músicos do mundo inteiro (tão diferentes!) tocando juntos a mesma canção.

O Playing for Change surgiu em 2004. Ouvindo Rodger Ridley cantar Stand By Me na rua, o produtor e engenheiro de som Mark Johnson teve a ideia de incluir outros músicos em sua performance. Desde então o projeto viajou e divulgou o trabalho de músicos da África do Sul, da Rússia, da Itália, de Gana, do Nepal, da Índia, da Venezuela, da Argentina, do Brasil, do Congo, da Holanda, do Zimbabwe... Gravou o CD/DVD Songs Around the World unindo os músicos em clipes memoráveis. Filmou o documenário "Peace Through Music". Criou a Playing For Change Foundation, que constrói e mantém escolas de música para crianças em países pobres. E continua viajando o mundo em busca de música, devendo lançar o Songs Around the World 2 ainda neste ano.

Para conhecer melhor o projeto e, principalmente, ver e ouvir muita música, não deixe de entrar no site www.playingforchange.com

"As a human race we come together for birth, we come together for death. What brings us together in between is up to us. Stop and listen to the universal language of music and bring that positive energy with you everywhere you go." (Mark Johnson)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Bussunda, a vida do casseta, de Guilherme Fiuza

“Bussunda Besserman Vianna”: em 13 de julho de 2006, menos de um mês depois da morte de Bussunda, esse era o título de uma crônica que seu irmão mais velho escreveu para o jornal O Globo. Não era piada, o irmão e amigo de Bussunda queria mostrar ao Brasil que por trás do palhaço famoso havia um homem com uma densa história familiar, humana e intelectual. O jornalista e escritor de Meu nome não é Johnny, Guilherme Fiuza, pegou a dica e começou a juntar material e fazer entrevistas para escrever a história de Cláudio Besserman Vianna, o Bussunda. Finalmente, em 2010, ficou pronto o livro Bussunda, a vida do casseta, que conta a história do casseta mais famoso, entremeada com as histórias dos outros integrantes do grupo e de personagens importantes na vida de Bussunda, além de destrinchar os bastidores da TV Globo durante o período em que a turma da Casseta Popular e do Planeta Diário provocou uma revolução no humor brasileiro.

Poucos dias depois de acabar de ler o livro, recomecei a lê-lo, agora com prazer redobrado, pois depois da primeira leitura passei a conhecer bem os personagens daquela saga. Apesar de Bussunda ser bem famoso, eu não sabia nada sobre a sua história e a de seus amigos. Parece que ninguém quer saber a história dos palhaços. Mas deveria. Além da graça, depois de ler a história dos palhaços entendemos melhor a piada.

A Casseta Popular foi criada em 1978 pelos estudantes de engenharia Helio do Couto Filho (Helio de La Peña), Marcelo Garmatter Barreto (Marcelo Madureira) e Roberto Adler (Beto Silva). Já em 1980, devido à dificuldade dos donos em conciliar o estudo com a redação e distribuição da revista, a Casseta foi reforçada pelos outsiders Bussunda e Claudio Manuel. O Planeta Diário, mais profissional, era um tablóide mensal com tiragem de milhares de exemplares lançado em dezembro de 1984. Seus criadores (Reinaldo Figueiredo, Hubert Aranha e Claudio Paiva) saíram das redações do Pasquim para criar seu próprio jornal.

A falta de engajamento com a esquerda diferenciava o humor da Casseta Popular e do Planeta Diário do humor da época. Ainda no Pasquim, o humor livre dos futuros donos do Planeta Diário incomodou até a secretária do jornal, Dona Neuma, quando eles criaram um Fidel Castro afeminado:

— Meninos, dessa vez vocês foram longe demais.
Nem tanto. Estavam só arrumando as malas para deixar o Pasquim e ir muito mais longe com o Planeta Diário. Agora não teriam mais constrangimentos com a velha guarda do humor engajado.

Não se tratava de substituir o engajamento de esquerda pelo de direita. O que o novo humor fazia era assumir a posição crítica do humor, que desconfia de tudo que se leve a sério demais. Bussunda cresceu com essa desconfiança. Filho caçula de uma família de militantes do PCB bem sucedidos na selva capitalista, Bussunda enfrentou com humor barricadas ideológicas na família, na escola e na universidade. Sem ser um rebelde, simplesmente não se adaptava aos padrões que tentavam lhe impor.

Seus problemas acabaram! O bordão das Organizações Tabajara caracteriza bem a fé cega que o século XX teve em geringonças teóricas e práticas que prometiam a solução de todos os problemas. Para o fim dos problemas sociais, o comunismo de um lado e o capitalismo irrestrito de outro prometiam o paraíso na Terra. Para a solução dos problemas individuais, o século XX viu desfilar uma série de soluções definitivas, entre as quais se destacaram a psicanálise e o padrão yuppie do jovem de sucesso bem educado e bem aparentado.

Como Guilherme Fiuza relata no livro, desde a adolescência o tímido Bussunda olhava de esguelha toda essa grandiosidade, apesar de sua mãe ser psicanalista e militante do partido comunista, e seus dois irmãos mais velhos seguirem à risca o caminho professado pela família, tanto no engajamento político, quanto no sucesso profissional na trilha de muito estudo e dedicação às carreiras. Bussunda não se rebelava, mas também não se enquadrava, e ia se especializando em combater a rigidez do sistema com humor afiado.

Bussunda e os outros humoristas do grupo não eram niilistas desesperançados da vida. Se assim fossem, não teriam nenhuma graça. Eles só não acreditavam em produtos mágicos que prometiam a solução de todos os problemas. Principalmente se esses produtos se levassem tão a sério a ponto de proibir a piada. Como na fábula, o Rei está nu, e a turma do Casseta & Planeta não perderia nenhuma oportunidade de mostrar a todos que a roupa do Rei é uma farsa. Essa visão está bem resumida no título de um dos best sellers do grupo: Como se dar bem na vida, mesmo sendo um bosta.

O homem não é grandes coisas, no máximo é um bosta, e toda tentativa de sacralizar alguns homens e algumas ideias humanas criam barreiras, falsas roupagens que impedem o homem de se enxergar e de enxergar suas ideias como de fato são. Não assumir a real condição humana não ajuda a melhorar, ao contrário, cria uma ilusão que torna o homem muito pior.

Leia o 1º Capítulo de Bussunda, a vida do casseta neste link da Livraria Cultura

E no Google Books, parte de Como se dar bem na vida, mesmo sendo um bosta