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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O Olho da Rua, de Eliane Brum

O Olho da Rua, de Eliane Brum, não é apenas uma coletânea de reportagens, mas um livro coeso para ser lido do início ao fim, como um romance.

O livro começa com a espera do parto e termina com a  morte natural. No meio do caminho, guerra, asilo, desemprego, coragem, morte violenta, esperança, amor romântico e meditação. O leitor se encanta, se revolta, ri e chora – chora muito mais do que ri, não vou lhe enganar.

Um parágrafo da última reportagem faz referência à primeira:

Descubro então que a morte é um parto do lado avesso. E na Enfermaria são todas parteiras que, em vez de esperar o tempo de nascer, respeitam o tempo de morrer.

Com sua prosa poética, Eliane Brum revela a beleza presente em histórias reais. A gente desconfia que as pessoas de qualquer lugar, se olharmos bem, são feitas da mesma matéria dos personagens dos grandes romances, da nossa matéria humana. Mas Eliane Brum foi lá conferir, percebendo com todos os sentidos cada personagem, cada cenário. Para alcançar a realidade profunda dos outros que traduz em seus textos, a principal arma da repórter é o silêncio; um silêncio não só da voz, mas de si. E nos ensina a suprema importância de saber escutar:

O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que palavras escolhem, que entonação dão ao que falam e em que momentos se calam revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom, da espessura das palavras – e do silêncio.

Escutar é também não interromper as pessoas quando elas não falam na velocidade que a gente gostaria ou com a clareza que a gente desejaria e, principalmente, quando elas não dizem o que a gente pensava que diriam. Escutar é não induzir as pessoas a dizer o que gostaríamos que dissessem. A reportagem sempre fica melhor quando somos surpreendidos, quando ouvimos algo que não planejávamos. Escutar é esperar o tempo que cada um tem de falar – e de silenciar. Como repórter – e como gente –, eu sempre achei que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta.

São 10 reportagens feitas no período em que a escritora trabalhou como repórter especial da revista Época. Há ainda os textos de bastidores, que contam a história da contadora de histórias; seus erros, seus acertos, suas opiniões e sua aprendizagem pessoal e profissional. 

Abaixo um sumário do livro. Como isca, reproduzo um trecho de cada reportagem:

1. A floresta das parteiras – Conta a história das parteiras do Amapá:

Encarapitadas em barcos ou tateando caminhos com os pés, a índia Dorica, a cabocla Jovelina e a quilombola Rossilda são guias de uma viagem por mistérios antigos. Cruzam com Tereza e as parteiras indígenas do Oiapóque. Unidas todas elas pela trama de nascimentos inscritos na palma da mão. “Pegar menino é ter paciência”, recita a caripuna Maria dos Santos Maciel, a Dorica, a mais velha parteira do Amapá. Aos 96 anos, mais de 2 mil índios desembarcaram no mundo pelas suas mãos pequenas, quase de criança. Dorica – avó, mãe, madrinha de centenas de filhos de pegação – nem mesmo gostaria de possuir o dom. “O dom é assim, nasce com a gente. E não se pode dizer não”, explica. “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo.”

2. A guerra do começo do mundo – Cenário. Os muitos mundos de Roraima, com a guerra pela área da reserva indígena Raposa-Serra do Sol no centro.

O tuxaua de Uiramutã, Orlando da Silva, de 58 anos, confere a posição do inimigo pela janela. “Estou cercado”, constata. Da aldeia avista o quartel em construção, a cidade a sua porta. Um e outro, acredita, instalados com o objetivo de ficar no caminho da reconquista da terra. “Não tenho sossego. Se isso acontecer, voltaremos a ser escravos.” Ele sabe o que diz. Aos oito anos foi vendido pelo pai a um comprador de diamantes por cinco sacas de sal, uma enxada e um machado, um forno e uma espingarda. Só aos dezessete conseguiu romper o jugo e voltar. “Encontrei índios encachaçados, mulheres abusadas, forró o dia todo. Nenhuma roça, só meu povo trabalhando para o branco em troca de nada”, lembra. “A isso chamam de boa convivência entre índios e brancos.”

3. A casa de velhos – A vida dentro do asilo Casa São Luiz para Velhice, no Rio de Janeiro, habitado por 257 velhos divididos entre os que vivem em suítes particulares e os que ocupam as camas gratuitas dos dormitórios coletivos.

De repente eles chegaram lá, diante do portão de ferro da casa de velhos. A vida inteira espremida numa mala de mão. Deixaram para trás a longa teia de delicadezas, as décadas todas de embate entre anseio e possibilidade. A família, os móveis, a vizinhança, as ranhuras das paredes, um copo na pia, o desenho do corpo no colchão. Reduzidos a um único tempo verbal, o pretérito, com suspeito presente e um futuro que ninguém quer.

4. O homem-estatística – A história de Hustene Alves Pereira, um trabalhador a procura de emprego e de uma vida digna para os seus.

Hustene Alves Pereira ficou pobre quando descobriu que não poderia mais comprar Danoninho. Nem biscoito recheado, leite condensado, refrigerante, salsichas, margarina light. Entre ele e as promessas dos anúncios da televisão se instalara um abismo. Os produtos que durante décadas aprendeu a desejar de repente retornaram à sua essência de fumaça. Hustene ficou pobre no dia em que perdeu os símbolos de sua vida.

5. O Povo do Meio – A resistência do povo que vive à beira do Riozinho do Anfrísio, na Amazônia.

Raimundo Nonato da Silva não sabe quem é Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os dois Silvas, o presidente do Brasil e o brasileiro sem presidente, há um vasto mundo no qual se chamar Raimundo nem é rima nem é solução. Ele vive num país desconhecido do próprio Brasil, onde a maioria dos homens atende por Raimundo. Sua república fica no coração da Amazônia e pertence a uma região cujo nome parece ter saído do universo mitológico de J.R.R. Tolkien: Terra do Meio. É um país invisível porque 99% dos habitantes não têm documentos. Oficialmente, os Raimundos e Raimundas não existem. Mas estão lá, insistem em existir, plenos de paradoxos. São analfabetos ou , como eles dizem, “cegos”. Nunca votaram porque fantasmas só se tornam eleitores em currais de fim de mundo. E eles vivem um pouco mais além do fim do mundo. O Povo do Meio pode desaparecer antes que o país oficial se aperceba dele. Como a floresta em que vive, e com a qual se confunde, está ameaçado de extinção.

6. Expectativa de vida: vinte anos

6.1 O sobrevivente – A história de Serginho Fortalece, único sobrevivente entre os 17 meninos que aparecem no documentário Falcão – Meninos do Tráfico.

No princípio era Gêneses. O nome foi escolha da mãe, a costureira Raimunda, testemunha-de-jeová. O pai, Sérgio, traficante, a enganou e impôs outro no cartório: o seu. Acrescentou, ainda, um Cláudio. Sérgio Cláudio nasceu de sete meses “porque o pai era viciado”, um menino minúsculo com orelhas enormes. Seu berço era uma caixa de sapatos. Aos dez anos, “entrou para o caminho errado” e ganhou um “vulgo”: Fortalece. Foi seu segundo batismo. Sérgio Cláudo de Oliveira Teixeira, o Serginho Fortalece, permaneceu invisível por 21 anos. Emergiu há uma semana como único sobrevivente do documentário Falcão – Meninos do Tráfico. Único vivo num grupo de dezessete, ele se tornou visível porque contrariou as estatísticas. A regra para adolescentes como ele é morrer – e não viver.

6.2 Mães vivas de uma geração morta – As histórias e os testemunhos das mães que sobrevivem a morte de seus filhos que entram meninos no negócio do tráfico.

Uma geração de brasileiros tem sido apagada do futuro à bala. As cenas do extermínio foram exibidas no documentário Falcão, do rapper MV Bill e do produtor Celso Athayde, da Central Única das Favelas (Cufa). Não chocou o país pela novidade, mas pela crueza. Dos dezessete garotos do filme, só um está vivo. Falcão provou que nas favelas brasileiras – e não apenas no Rio de Janeiro – a expectativa de vida dos meninos do tráfico é de vinte anos. São executados antes de se tornar adultos. Selvina, Maria, Enilda, Josefa, Eva, Graça, Helena e Francisca são as pietás das periferias. As mães vivas da geração morta.

7. No Brasil do Zé Capeta – A incrível história da corrida do ouro no garimpo de Eldorado do Juma, na Amazônia.

No Eldorado do Juma, a maior corrida do ouro desde Serra Pelada, o patrão se chama Zé Capeta. Mas só fala em Deus. Um dos homens mais abençoados pelo metal é um crente chamado Ainda Tem, mas ele acredita ter sido vítima do diabo. Na cidade de Apuí, o prefeito esbraveja contra o garimpo, mas o vice abandonou a prefeitura e amealhou mais de dois quilos de ouro com os dois pés enfiados na lama. Zé da Balsa e Mariano descobriram a grota rica, mas foram arrancados dela no cano da espingarda. A igreja se esvaziou de fiéis, mas a dama mais distinta da cidade inaugurou seu cabaré com um leilão de maninas. Às margens do rio Juma as prostitutas cobram em gramas dourados, mas sentem prazer e até se apaixonam. Parece ficção de Dias Gomes, mas é tudo real. E se passa agora no sul do Amazonas.

8. Um país chamado Brasilândia –  Histórias de amor estão no centro da vida na Brasilândia, vila pobre de 250 mil habitantes na zona norte de São Paulo.

Na Brasilândia se ama muito, com a intensidade de quem coloca o amor acima de todas as aspirações. Não há dilemas classemedianos do tipo - “e a minha carreira?”. Ama-se desbragadamente. Vale para as pessoas – vale para os cães.

9. O inimigo sou eu – A repórter participa de um curso de meditação vipássana em um retiro na região serrana do Rio de Janeiro e enfrenta uma batalha no interior do próprio corpo,.

Este é apenas o relato de uma viagem para um lugar bem exótico – o meu corpo. Você poderia estar lendo sobre uma circunavegação na Antártica ou a escalada da parede sul do Aconcágua. Mas esta é uma expedição de dez dias, mais de cem horas de olhos fechados, na mesma posição, sem sair do lugar e sempre para dentro. Ao avesso de qualquer outra aventura, quanto mais longe, mais perto estava de mim.

Neste mundo em que todas as geografias já foram devassadas – e a maioria delas devastada – , talvez este seja um desafio mais real.

10. Vida até o fim 
“O sofrimento só é intolerável se ninguém cuida”, Cicely Saunders, médica que criou o tratamento chamado de “cuidados paliativos”.

10.1 A enfermaria entre a vida e a morte – A repórter conta histórias de pacientes na Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo; e mostra a forma como a medicina paliativa trata o doente incurável até o fim da vida.

De repente, João Barbosa de Lima começou a rir às gargalhadas. Seu corpo miúdo, devastado pelo câncer, se sacudia todo na cama do hospital. Depois de meses sem um sorriso, o iceberg que comprimia seu riso se desprendia dele. “Essa doença me deixou de um jeito que filho me beijava, neto me beijava, mulher me beijava e eu não conseguia sorrir. Estava trancado por dentro. Então, meu filho imitou o Costinha, vejam só, o Costinha, e destrancou meu riso.” Banal assim. Grande assim. Daquele dia em diante João ria sozinho na cama do hospital. Puxava um lenço encarnado para enxugar as lágrimas dos olhos. E continuou rindo quando foi para casa. E nem queria rir tanto porque lhe doía por dentro. Mas não segurava mais. João sabia que morreria, mas tinha descoberto também o que o fazia viver. A família ao redor, esse riso à toa, a mulher de uma vida, a vida vivida.

10.2 A mulher que alimentava – A repórter acompanha os últimos 115 dias de vida de Ailce, paciente terminal de câncer, para ouvir a história dessa mulher comum, merendeira aposentada, a partir da perspectiva da morte.

“É tão estranho”, ela diz. “Eu passei a vida inteira batendo ponto, com horário pra tudo. Quando me aposentei, arranquei o relógio do pulso e joguei fora. Finalmente eu seria livre. Aí apareceu essa doença. Quando tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado.”

3 comentários:

  1. só quero ter o tempo deste final de semana passar, para que eu possa chegar em uma livraria e compra-lo. nossa! me parece encantador e cheio de ensinamento claro!!!

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  2. Livro perfeito! Li para fazer um trabalho acadêmico e realmente não tem como conter o choro. Super recomendo.

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