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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Religião para ateus, de Alain de Botton


Certa época, muito tempo atrás, a gravadora do cantor João Gilberto contratou um psicólogo para acompanhá-lo. Ao entardecer, entre amigos na Praia de Itapuã, João fala:
– O vento está despenteando os coqueiros.
– Mas coqueiro não tem cabelo – pondera o psicólogo.
– E tem gente que não tem poesia – João encerra a discussão.

A discussão entre novos ateus e religiosos a respeito da existência de Deus lembra a conversa na Praia de Itapuã, sem o fecho genial do João Gilberto. Os novos ateus escrevem livros para provar que coqueiros não têm cabelos. Os religiosos, ofendidos,  retrucam que os coqueiros, sim, têm cabelos, em vez de dizer que a linguagem da religião é poética, portanto não há em seus textos, rituais ou celebrações qualquer afirmação objetiva sobre os fatos ou a natureza das coisas. 

O livro Religião para ateus, de Alain de Botton, passa ao largo da questão sobre a existência de Deus e trata de um problema bem mais real. Ele mostra, com diversos exemplos, como a vida moderna sem religião expõe as pessoas (ateus e não ateus) a uma série de carências que as instituições seculares não conseguem preencher. Em contraste, o autor revela como as práticas religiosas tradicionais ajudavam os fiéis a: 1) enfrentar as principais dificuldades da vida (solidão, medo da morte, ansiedade, falta de sentido, destempero); e 2) desenvolver os sentimentos e as virtudes fundamentais para o bem-estar (gentileza, compaixão, ternura, fé, gratidão, fortaleza). 

A religião (ou religiosidade), quer Deus seja “apenas” nossa invenção quer corresponda a uma realidade externa, faz falta.

Religião para ateus e não ateus – Embora escrito por e para ateus, o livro não se prende ao grupo dos que se dizem ateus. O tema principal é a importância do envolvimento emocional em  práticas religiosas sofisticadas. E, no mundo moderno, boa parte dos religiosos ou não participa de uma rotina de práticas, ou não se envolve emocionalmente com os rituais, tendo perdido completamente a intimidade com as grandes narrativas de sua religião e o amor pelo divino.

Leia aqui trechos de Religião para ateus:

..., a real questão não é se Deus existe ou não, mas para onde levar a discussão ao se concluir que ele evidentemente não existe. (pg. 11)

É quando paramos de acreditar que as religiões foram outorgadas do alto ou que são totalmente insanas que as coisas ficam mais interessantes. Podemos então reconhecer que inventamos as religiões para servirem a duas necessidades centrais, que existem até hoje e que a sociedade secular não foi capaz de resolver por meio de nenhuma habilidade especial: primeiro, a necessidade de viver juntos em comunidade e em harmonia apesar dos nossos impulsos egoístas e violentos profundamente enraizados. E, segundo, a necessidade de lidar com aterrorizantes graus de dor, que surgem da nossa vulnerabilidade ao fracasso profissional, a relacionamentos problemáticos, à morte de entes queridos e a nossa decadência e morte. Deus pode estar morto, mas as questões urgentes que nos impulsionaram a inventá-lo ainda nos sensibilizam e exigem resoluções que não desaparecem quando somos instados a perceber algumas imprecisões científicas na narrativa sobre o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. (pg. 12)

[Este livro] espera resgatar parte do que é maravilhoso, tocante e sábio em tudo o que não mais parece verdadeiro. (pg. 18)

Trancados em nossos casulos privados, a mídia passou a ser a principal maneira de imaginar como são as outras pessoas, e, como consequência, esperamos que todos os estranhos sejam assassinos, golpistas ou pedófilos – o que reforça o impulso de confiar nos poucos indivíduos que já foram selecionados por redes familiares ou de classe. (pg. 24)

Por mais isolados que tenhamos nos tornado, evidentemente não abandonamos a esperança de construir relações. Nos solitários cânions da cidade moderna, não existe emoção mais estimada que o amor. Entretanto, não se trata do amor sobre o qual a religião fala, tampouco a expansiva e universal irmandade da humanidade, é uma variedade mais ciumenta e restrita e, no fim, mais mesquinha. É um amor romântico, que nos põe em uma busca maníaca de uma única pessoa com quem esperamos conquistar uma comunhão completa e para toda a vida, uma pessoa em particular que nos dispensará de qualquer necessidade por gente em geral. (pg. 26)

O número de pessoas que frequentam restaurantes todas as noites sugere que esses locais devem ser refúgios contra o anonimato e a frieza, mas, na realidade, não têm mecanismos sistemáticos para apresentar os fregueses uns aos outros, para dispersar suas desconfianças mútuas, para romper os clãs em que as pessoas cronicamente se segregam ou para que abram o coração e compartilhem suas vulnerabilidades com outros cidadãos. O foco está na comida e na decoração, nunca nas oportunidades de ampliar e aprofundar as afeições. Em um restaurante, tanto quanto em uma casa, quando a comida em si – a textura dos escalopes ou a umidade das abobrinhas – torna-se a principal atração, podemos ter certeza de que algo está fora de lugar. (pg. 37)

Muitas religiões têm consciência de que os momentos relacionados à ingestão de comida são propícios à educação moral. É como se a iminente perspectiva de uma refeição seduzisse nossos selves normalmente resistentes a demonstrar um pouco da mesma generosidade ao outro que a mesa nos exibiu. Essas religiões também conhecem bastante a respeito de nossas dimensões sensoriais, não intelectuais, para saber que não podemos ser mantidos em uma trilha virtuosa apenas por meio de palavras. Elas sabem que, em uma refeição, terão uma plateia cativa suscetível de aceitar um equilíbrio entre ideias e alimentos – e assim elas transformam refeições em lições de ética disfarçadas. (pg. 38)

A tradição judaico-cristã tem, de maneira intermitente, reconhecido que o que pode impedir que nos corrijamos é um sentimento solitário e culpado de quão extraordinariamente maus somos e quão além da salvação estamos. Essas religiões, portanto, proclamam com considerável frieza que todos nós, sem exceção, somos criaturas bastante imperfeitas. “Eis que eu nasci em iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe”, troveja o Velho Testamento (Salmo 51), em uma mensagem ecoada no Novo Testamento: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram” (Romanos 5:12).
Entretanto, o reconhecimento dessa escuridão não é o ponto final que o pessimismo contemporâneo com tanta frequência supõe que deva ser. Que somos tentados a enganar, roubar, insultar, ignorar egoisticamente os outros e ser infiéis, disso ninguém duvida. A questão não é se experimentamos tentações chocantes, mas se somos capazes de superá-las de vez em quando.
A doutrina do pecado original nos estimula a caminhar em direção ao aprimoramento moral, por meio da compreensão de que os defeitos que desprezamos em nós são características inevitáveis da espécie. Podemos, assim, admiti-las sinceramente e tentar corrigi-las à luz do dia. A doutrina sabe que a vergonha não é uma emoção útil de carregarmos enquanto trabalhamos para diminuir um pouco tudo aquilo que nos envergonha. Pensadores iluministas acreditavam nos fazer um favor ao declarar que o homem era, original e naturalmente, bom. Porém, os avisos repetidos sobre nossa decência inata podem fazer com que fiquemos paralisados pelo remorso em relação à incapacidade de corresponder a níveis impossíveis de integridade. Confissões de pecaminosidade universal se revelam um ponto de partida melhor para darmos os modestos passos iniciais rumo à virtude. 
Uma ênfase no pecado original serve ainda para responder a quaisquer dúvidas a respeito de quem deve ter o direito de distribuir conselhos morais em uma era democrática. À inflamada pergunta “e quem é você para me dizer como viver?”, um crente apenas precisa reagir com a resposta “um colega pecador”. Todos descendemos de um único ancestral, o caído Adão, e somos, portanto, acossados por ansiedades idênticas, tentações à iniquidade, desejos de amor e ocasionais aspirações à pureza. (pg. 69)

O orgulho, uma atitude mental superficialmente discreta, era considerado digno de registro pelo cristianismo, da mesma maneira que o judaísmo não via nada de frívolo em fazer recomendações sobre quantas vezes os casais deveriam ter relações sexuais.
Vejamos, em contraste, o atraso e a rudeza com que o Estado moderno entra em nossa vida com suas injunções: intervém quando já é tarde demais, após termos pegado a arma, roubado o dinheiro, matado as crianças ou jogado o cônjuge pela janela. Não estuda a dívida que grandes crimes têm com abusos sutis. O feito da ética judaico-cristã era abranger mais que apenas os grandes e óbvios vícios da humanidade. Suas recomendações tratavam de uma série de crueldades e maus-tratos indistintos, do tipo que desfiguram a vida cotidiana e formam o cadinho para crimes cataclísmicos. A rudeza e humilhação emocional podem ser tão corrosivas para uma sociedade funcional quanto o roubo ou o assassinato.
Os Dez Mandamentos foram uma primeira tentativa de controlar a agressão do homem contra o próximo. Nos éditos do Talmude e das listas cristãs medievais de virtudes e vícios, testemunhamos um envolvimento com formas de maus-tratos mais modestas, porém igualmente traiçoeiras e inflamáveis. É muito fácil declarar que assassinato e roubo são errados; exige-se um feito maior da imaginação moral para advertir alguém contra as consequências de se fazer uma declaração depreciativa ou de ser sexualmente distante. (pg. 72)

Em contraste com esse desejo cristão de gerar uma atmosfera moral, os teóricos libertários argumentaram que o espaço público deveria ser mantido neutro. Não deveria haver lembretes de bondade nas paredes dos prédios ou nas páginas dos livros. Tais mensagens, afinal, constituiriam violações dramáticas da nossa muito valorizada “liberdade”.
Porém, já vimos por que essa preocupação não necessariamente honra nossos desejos mais profundos, dada nossa natureza compulsiva e voluntariosa. Podemos agora admitir que, de qualquer forma, nossos espaços públicos não são nem remotamente neutros. São – como revela uma olhada rápida em qualquer avenida – cobertos de mensagens comerciais. Mesmo em sociedades que em teoria se dedicam a nos deixar livres para fazer nossas escolhas, a mente é manipulada o tempo todo em direções que dificilmente reconhecemos de maneira consciente. (pg. 75)

Ateus tendem a ter pena dos habitantes de sociedades dominadas pela religião por causa da propaganda que eles precisam suportar, mas isso é fazer vista grossa aos igualmente poderosos e contínuos chamados à oração das sociedades seculares. (pg. 76)

A perspectiva religiosa acerca da moralidade sugere que, no fim, trata-se de um sinal de imaturidade se contrapor muito tenazmente a ser tratado como uma criança. A obsessão com a liberdade ignora o quanto de nossa necessidade infantil original, por limite e orientação, permanece dentro de nós, e, portanto, o quanto podemos aprender com estratégias paternalistas. Não é muito bom, e no fim das contas nem mesmo muito libertador, ser considerado tão adulto a ponto de ser abandonado para fazer tudo como se desejar. (pg. 82)

Discursos de formatura identificam, de maneira estereotipada, a educação liberal e a aquisição de sabedoria e autoconhecimento, mas esses objetivos têm pouca relação com os métodos cotidianos de instrução e exame departamental. Julgando-se pelo que fazem, não pelo que declamam de modo despreocupado, o negócio das universidades é produzir uma maioria de profissionais rigidamente focados (advogados, médicos, engenheiros) e uma minoria de graduados em artes, culturalmente bem informados, mas confusos em termos éticos e temerosos quanto a conseguir uma ocupação remunerada pelo resto da vida.
Encarregamos, de forma explícita, o sistema de educação superior de uma missão dupla e talvez contraditória: ensinar-nos a ganhar a vida e a viver. Porém, negligenciamos o segundo desses objetivos, deixando-o vago e ignorado (pg. 89)

O cristianismo está focado em ajudar uma parte de nós que a linguagem secular tem dificuldade até mesmo em nomear, que não é exatamente a inteligência ou a emoção, nem o caráter ou a personalidade, mas outra entidade, ainda mais abstrata, ligada a todas essas de maneira imprecisa e diferenciada delas por uma dimensão ética e transcendente adicional – e à qual podemos nos referir, seguindo a terminologia cristã, como alma. Tem sido a tarefa essencial da máquina pedagógica cristã cultivar, tranquilizar, confortar e guiar nossas almas. (pg. 97)

O zen-budismo, por exemplo, propõe ideias sobre a importância da amizade, a inevitabilidade da frustração e a imperfeição dos esforços humanos. Mas ele não discursa simplesmente aos seguidores sobre esses princípios; ajuda-os de forma mais direta a aprender sua verdade por meio de atividades como fazer arranjos florais, caligrafia, meditação, caminhada, rastelar cascalho e, a mais famosa, beber chá. (pg. 119)


Às seis horas de um sábado de junho, 2.573 anos após o Buda nascer não muito longe de Kapilavastu, na bacia fluvial do Ganges, sento-me em uma semicírculo com doze outros noviços em um celeiro em Suffolk. Nosso professor, Tony, começa a sessão nos convidando a entender a condição humana segundo o olhar budista. Ele diz que na maior parte do tempo, sem nenhuma escolha em questão, somos dominados pelo nosso ego, ou, como é chamado em sânscrito, nosso atman. Esse centro de consciência é, por natureza, egoísta, narcisista e insaciável, irreconciliado com a própria mortalidade e determinado a evitar a perspectiva da morte com fantasia a respeito dos poderes redentores de carreira, status e riqueza. No momento em que nascemos, ele é libertado como um dínamo demente e não se dispõe a descansar até darmos o último suspiro. Como o ego é inerentemente vulnerável, seu ânimo predominante é a ansiedade. É arisco, pula de objeto em objeto, sempre incapaz de relaxar a vigilância ou se relacionar de maneira adequada com os outros. Mesmo no mais auspicioso dos contextos, nunca está longe de um incessante e pulsante pandemônio de preocupação, que conspira para impedir o envolvimento sincero com qualquer coisa fora de si mesmo. Contudo, o ego também tem uma tocante tendência a confiar constantemente em que seus desejos estão prestes a se realizar. Imagens de tranquilidade e segurança o assombram: um emprego específico, uma conquista social e uma aquisição material sempre parecem oferecer a promessa do término do ato de desejar. Entretanto, cada preocupação logo é substituída por outra, e um desejo é substituído pelo próximo, gerando um ciclo interminável que os budistas chamam de “cobiça”, ou upadana, em sânscrito.
Apesar disso, como explica Tony, esse quadro sombrio de uma parte nossa não precisa definir tudo o que somos, pois também somos dotados de rara capacidade, que pode ser reforçada com exercícios espirituais, de ocasionalmente abandonar as exigências do ego e entrar em um estado que os budistas chamam de anatman, ou ausência do ego, durante o qual somos capazes de recuar das paixões e pensar em como nossa vida poderia ser caso não estivéssemos sobrecarregados pela necessidade adicional e dolorosa de sermos nós mesmos.
É sinal da predileção do Ocidente pelo intelecto que seja recebida com surpresa a informação de que deveríamos começar a deixar o ego de lado não só por meio de argumentação lógica, mas aprendendo a sentar no chão de uma maneira nova. (pg. 127)

Os detalhes específicos dos exercícios ensinados em retiros, budistas ou de outras religiões, talvez não sejam tão importantes quanto o ponto geral que eles levantam acerca de nossa necessidade de impor maior disciplina em nossa vida interior.
Se uma parcela predominante de nossa angústia é causada pelo estado de nossa psique, parece perverso que a indústria do lazer sempre procure trazer conforto ao corpo sem tentar consolar e domar o que os budistas, de maneira tão presciente, chamam de nossa “mente de macaco”. (pg. 131)

As religiões, ao contrário das universidades modernas, não limitam seu ensino a um período fixo de tempo (alguns anos da juventude), a um espaço particular (um campus) ou a um único formato (exposição oral). Reconhecendo que somos criaturas tão sensoriais quanto cognitivas, elas compreendem que precisam usar todos os recursos possíveis para influenciar nossa mente. (pg. 134)

No sentido mais amplo, o culto a Maria fala sobre a extensão em que, apesar de nossos poderes adultos de raciocínio, nossas responsabilidades e nosso status, as necessidades da infância persistem em nós. Embora, por longos períodos da vida, possamos acreditar em nossa maturidade, nunca temos sucesso em nos proteger dos eventos catastróficos que varrem nossa capacidade de raciocinar, nossa coragem e nossa habilidade para colocar dramas em perspectiva e que nos jogam de volta a um estado de desamparo primordial.
Em tais momentos, podemos desejar ser embalados e tranquilizados, como fomos décadas atrás por um adulto compreensível, provavelmente nossa mãe, uma pessoa que fez com que nos sentíssemos fisicamente protegidos, acariciou nossos cabelos, olhou para nós com benevolência e ternura e talvez tenha dito, baixinho, não muito mais que “está tudo bem”.
Embora esses desejos não sejam mencionados na sociedade adulta, foi uma conquista das religiões saber como reanimá-los e legitimá-los. Maria no cristianismo, Ísis no antigo Egito, Deméter na Grécia, Vênus em Roma e Guan Yin na China, todas funcionam como condutos para memórias de ternura primeva. Suas estátuas frequentemente ficam em espaços escuros, uterinos, seus rostos são misericordiosos e encorajadores, elas nos permitem sentar, falar e chorar ali. As semelhanças são grandes demais para ser coincidência. Estamos lidando aqui com figuras que evoluíram não de origens culturais compartilhadas, mas em resposta às necessidades universais da psique humana.
Os budistas chineses visitam Guan Yin pelos mesmos motivos que os católicos procuram Maria. Ela também tem olhos bondosos e pode sugerir alternativas a odiar a si mesmo. Em templos e em praças abertas em toda a China, adultos se permitem ser fracos na presença dela. Seu olhar tem o hábito de fazer as pessoas chorarem – porque o momento em que alguém explode não costuma ser quando as coisas estão duras, mas quando afinal encontram ternura e uma chance de admitir tristezas nutridas em silêncio por muito tempo. Como Maria, Guan Yin compreende as dificuldades envolvidas em tentar levar uma vida adulta remotamente adequada. (pg. 140)

Uma das características dominantes do mundo [moderno], e certamente seu maior defeito, é o otimismo.
Apesar dos ocasionais momentos de pânico, quase sempre ligados a crises do mercado, guerras ou pandemias, a era secular mantém uma devoção irracional à narrativa do progresso, baseada em uma fé messiânica nas três grandes forças de mudança: ciência, tecnologia e comércio. Os avanços materiais desde meados do século XVIII têm sido tão notáveis, e aumentaram de maneira tão exponencial nosso conforto, nossa segurança, nossa riqueza e nosso poder, que dão um golpe quase fatal na nossa capacidade de permanecer pessimistas – e, portanto, de maneira crucial, na capacidade de ficarmos sãos e contentes. É impossível manter uma avaliação equilibrada do que a vida deve nos fornecer após testemunharmos a decifração do código genético, a invenção do celular, a inauguração de supermercados de estilo ocidental em cantos remotos da China e o lançamento do telescópio Hubble.
Contudo, embora seja inegável que a trajetória científica e econômica da humanidade tem apontado com firmeza para o alto há vários séculos, nós não constituímos a humanidade: nenhum indivíduo pode viver exclusivamente em meio aos desenvolvimentos revolucionários da genética ou das telecomunicações que dão à nossa era seus preconceitos característicos e otimistas. Podemos extrair algum benefício da disponibilidade de banhos quentes e chips de computadores, mas nossa vida não está menos sujeita a acidentes, ambições frustradas, desilusões amorosas, inveja, ansiedade ou morte que a dos antepassados medievais. Mas ao menos nossos ancestrais tinham a vantagem de viver em uma era religiosa que nunca cometeu o engano de prometer à população que a felicidade poderia algum dia estabelecer um lar permanente na terra. (pg. 153)

Ao relegar a esperança a uma esfera distante, a Igreja pôde adotar uma atitude particularmente perspicaz e não sentimental acerca da realidade terrena. Ela não supõe que a política poderia algum dia criar a justiça perfeita, que qualquer casamento poderia ser livre de conflitos ou discórdia, que o dinheiro poderia trazer segurança, que um amigo poderia ser leal para sempre ou, de maneira mais geral, que a Nova Jerusalém poderia ser construída em solo comum. Desde sua fundação, a religião tem mantido uma visão sóbria, de uma espécie que o mundo secular é covarde e sentimental demais para abraçar, a respeito das nossas chances de melhorar no que diz respeito aos fatos brutais das nossas naturezas corruptas.
Os seculares, neste momento da história, estão mais otimistas que os religiosos – certa ironia, dada a frequência com que os últimos têm sido ridicularizados pelos primeiros por sua aparente ingenuidade e credulidade. O desejo dos seculares por perfeição tem crescido tão intensamente a ponto de levá-los a imaginar que o paraíso pode ser realizado na terra após mais alguns anos de crescimento econômico e de pesquisas médicas. Sem nenhuma consciência evidente das contradições, eles conseguem ao mesmo tempo descartar de maneira brusca uma crença em anjos e confiar com sinceridade que os poderes combinados do Fundo Monetário Internacional, do establishment da pesquisa médica, do Vale do Silício e da política democrática podem curar os males da humanidade. (pg. 155)

Casamentos cristãos e judaicos, embora nem sempre felizes, ao menos são poupados do segundo tipo de sofrimento, que surge da impressão equivocada de que de algum modo é errado ou injusto estar descontente. O cristianismo e o judaísmo apresentam o casamento não como uma união inspirada e governada por um entusiasmo subjetivo, mas sim, e mais modestamente, como um mecanismo pelo qual indivíduos podem assumir uma posição adulta na sociedade e, a partir daí, com a ajuda de um amigo íntimo, tomar para si, sob orientação divina, a criação e a educação da próxima geração. Essas expectativas limitadas tendem a impedir a desconfiança, tão familiar a parceiros seculares, de que poderia haver alternativas mais intensas, angelicais ou menos carregadas em outra parte. Dentro do ideal religioso, atritos, disputas e tédio não são sinais de erro, mas da vida seguindo de acordo com o planejado.
Apesar da abordagem prática, essas religiões reconhecem o desejo de amar de forma apaixonada. Elas sabem de nossa necessidade de acreditar nos outros, de cultuá-los e servi-los e de descobrir neles uma perfeição não encontrada em nós mesmos. Elas simplesmente insistem que esses objetos de adoração deveriam sempre ser divinos, e não humanos. Portanto, elas nos dão divindades eternamente jovens, atraentes e virtuosas para nos guiar através da vida, ao mesmo tempo em que nos lembram todos os dias de que seres humanos são criações insípidas e imperfeitas, dignas de perdão e paciência, um detalhe que tende a escapar de nossa atenção no calor das discussões maritais. “Por que você não pode ser mais perfeito?” é a pergunta irritada por trás da maioria dos confrontos seculares. No esforço para evitar que os cônjuges atirem um contra o outro sonhos coalhados, as fés têm o bom senso de nos fornecer anjos para cultuar e amantes para tolerar. (pg. 156) 

Uma visão de mundo pessimista não precisa envolver uma vida desprovida de alegria. Os pessimistas podem ter uma capacidade muito maior de apreciação que os otimistas, porque nunca esperam que as coisas deem certo e, assim, podem se surpreender pelo modesto sucesso que ocasionalmente cruza seus horizontes sombrios. Os otimistas seculares contemporâneos, por outro lado, com seu senso de prerrogativas bem desenvolvido, em geral não conseguem saborear nenhuma epifania da vida cotidiana enquanto se ocupam da construção do paraíso terreno.
Aceitar que a existência é inerentemente frustrante, que estamos para sempre cercados de realidades atrozes, pode nos dar o ímpeto inicial para dizer “obrigado” com maior frequência. É revelador que o mundo secular não seja muito versado na arte da gratidão: não damos mais graças por colheitas, refeições, abelhas ou clima bom. Em um nível superficial, poderíamos supor que isso acontece porque não há ninguém para quem possamos dizer “obrigado”. Mas, no fundo, parece mais uma questão de ambição e expectativa. Hoje nos orgulhamos de ter trabalhado duro o bastante para que possamos supor como normais muitas das bênçãos pelas quais nossos ancestrais piedosos e pessimistas agradeciam aos céus. Existe de fato alguma necessidade, nos perguntamos, de separar um momento de gratidão em honra de um pôr do sol ou de um damasco? Não existem objetivos mais altos que possamos mirar? (pg. 158)

Em vez de tentar corrigir as humilhações insistindo na nossa importância equivocada, deveríamos tentar apreender e apreciar nossa insignificância essencial. O notável perigo de vida em uma sociedade ateísta é que ela não tem mensagens que nos lembrem do transcendente e, portanto, nos deixa despreparados para a decepção e a destruição final. Quando Deus está morto, os seres humanos – para seu prejuízo – correm o risco de assumir o palco psicológico central. Eles se imaginam comandantes do próprio destino, pisoteiam a natureza, esquecem os ritmos da terra, negam a morte e se esquivam de avaliar e reconhecer tudo o que escapa ao seu domínio, até que, afinal, precisam colidir de maneira catastrófica com as arestas pontiagudas da realidade.
Nosso mundo secular é desprovido dos tipos de ritual que poderiam nos colocar gentilmente em nosso lugar. Sub-repticiamente, este mundo nos convida a pensar no presente momento como o ápice da história, e nas conquistas dos nossos colegas humanos como a medida de todas as coisas – uma grandiosidade que nos mergulha em redemoinhos de ansiedade e inveja. (pg. 168)

A religião é, acima de tudo, um símbolo daquilo que nos ultrapassa e uma educação sobre as vantagens de reconhecer nossa insignificância. Tem simpatia natural com todos aqueles aspectos da existência que nos descentram: geleiras, oceanos, formas de vida microscópicas, recém-nascidos ou a ressonante linguagem do Paraíso perdido, de John Milton (“Arfando em tempestuosos torvelinos...”). Ser colocado no nosso devido lugar por algo maior e mais velho que nós não é uma humilhação; deveria ser aceito como um alívio em relação às esperanças insanamente ambiciosas que nutrimos para nossa vida.
A religião é mais astuta que a filosofia ao compreender que não basta apenas delinear tais ideias em livros. É claro que o ideal é que consigamos – tanto fiéis como infiéis – ver coisas sub specie aeternitatis o tempo inteiro, mas é quase certo que perderemos o hábito a menos que sejamos lembrados firme e consistentemente.
Uma das iniciativas mais perspicazes da religião tem sido a provisão de suvenires do transcendente, na oração matinal e no serviço semanal, no festival da colheita e no batismo, no Yom Kippur e no Domingo de Ramos. O mundo secular é desprovido de um ciclo equivalente de momentos durante os quais podemos ser instigados a imaginativamente sair da cidade terrena e recalibrar nossa vida de acordo com um conjunto de parâmetros mais amplo e cósmico. (pg. 169)

Dentro de um armário em uma das galerias medievais do Louvre, encontramos uma estatueta identificada como Virgem com o menino Jesus, roubada da abadia de Saint-Denis em 1789. Durante séculos, antes de ser relegada ao museu, as pessoas se ajoelhavam com regularidade diante dela e extraíam força da compaixão e da serenidade de Maria. Entretanto, a julgar pela legenda e pelo texto no catálogo, na visão do moderno Louvre o que realmente precisamos fazer é entendê-la – entender que é banhada em prata, que em sua mão livre Maria segura uma fleur-de-lis de cristal, que a peça é típica dos objetos em metal fabricados na Paris da primeira metade do século XIV, que a forma geral da estátua vem de um modelo bizantino chamado Virgem da Ternura e que é o mais antigo exemplo francês, que se tem conhecimento, do esmalte translúcido basse-taille, desenvolvido por artesãos toscanos no final do século XIII.
Infelizmente, quando nos é apresentada sobretudo como um repositório de informações concretas, a arte logo começa a perder o interesse para a grande maioria. Uma medida de tal indiferença emerge da série de imagens do fotógrafo alemão Thomas Struth, que mostra turistas andando por alguns dos maiores museus do mundo. Claramente incapazes de extrair muita substância do ambiente, eles param, confusos, diante de Anunciações e Crucificações, consultando seus catálogos com grande zelo, talvez buscando a data de uma obra ou o nome do autor, enquanto, à frente, um fio de sangue escarlate corre pela perna musculosa do filho de Deus ou uma pomba paira no céu azul. Eles parecem querer ser transformados pela arte, mas os raios que esperam ver nunca caem. Dão a impressão de ser como os participantes decepcionados de uma sessão espírita fracassada. (pg. 179)

Parecemos incapazes de resistir a exagerar cada aspecto nosso: há quanto tempo estamos no planeta, a importância daquilo que conquistamos, quão raros e injustos são nossos fracassos profissionais, como nossos relacionamentos estão cheios de mal-entendidos, quão profundos são nossos sofrimentos. O melodrama está sempre na ordem do dia.
A arquitetura religiosa pode desempenhar uma função crucial em relação a esse egoísmo (no fim das contas, tão doloroso quanto equivocado), devido à sua capacidade de ajustar as impressões acerca de nosso tamanho físico – e, por conseguinte, psicológico – ao trabalhar com dimensões, materiais, sons e fontes de iluminação. Em certas catedrais vastas ou construídas a partir de pedras enormes e de aparência antiga, ou em outras, escuras, em que há um único raio de luz penetrando por uma abertura distante ou um silêncio que somente é quebrado pelo ocasional som de água pingando de uma grande altura até um reservatório profundo, podemos sentir que estamos sendo introduzidos, com incomum e sedutora graça, a um senso não desagradável da própria insignificância.
Ser obrigado a “se sentir pequeno” é uma dolorosa realidade diária da existência humana. Mas ser levado a se sentir pequeno por algo poderoso, nobre, consumado e inteligente equivale a ter sabedoria oferecida junto com um pouco de prazer. Há igrejas que podem nos induzir a abdicar do egoísmo sem impor qualquer humilhação. Nelas, podemos deixar de lado as preocupações comuns e enfrentar (de uma maneira que jamais ousamos fazer quando sob fogo direto de outros humanos) nossa própria nulidade e mediocridade. Podemos nos examinar como se estivéssemos a distância, não mais ofendidos pelas feridas infligidas à autoestima, nos sentindo, de uma maneira nova, indiferentes ao destino derradeiro, generosos em relação ao universo e de mente aberta para seu curso. (pg. 217)

Existe uma relação diabolicamente direta entre a importância de uma ideia e quão nervosos ficamos com a perspectiva de termos de pensar nela. Podemos ficar certos de que temos algo especialmente crucial com que lidar quando a própria noção de estar sozinho se torna intolerável. Por esse motivo, as religiões sempre foram enfáticas em recomendar a seus seguidores que observassem períodos de isolamento, por mais desconforto que eles a princípio possam provocar. (pg. 222)

Muitos de nós tivemos a experiência de, estando no hemisfério norte, olhar para o céu durante uma noite de setembro, quando o alinhamento dos planetas deixa a lua cheia parecendo especialmente luminosa e próxima. É possível que tenhamos pensado, ao menos por um breve momento, em sua majestade e no desafio que representa para nossa perspectiva normal, geocêntrica. Contudo, é pouco provável que aqueles de nós que não são astrônomos ou astronautas tenham formalizado essa observação lunar, ou, na verdade, tenham pensado muito no assunto, dando-lhe nada além de poucos minutos de contemplação.
Entretanto, para zen-budistas no Japão, o ritual conhecido como tsu-kimi commoditizou a atividade da observação da lunar. Todos os anos, no décimo quinto dia do oitavo mês do tradicional calendário lunissolar japonês, seguidores se reúnem ao anoitecer ao redor de plataformas cônicas especialmente construídas para essas ocasiões e, durante várias horas, leem em voz alta orações que utilizam a lua como trampolim para reflexões sobre ideias zen de impermanência. Velas são acesas e bolinhos de arroz chamados tusukimi dango são preparados e compartilhados entre estranhos em uma atmosfera ao mesmo tempo amigável e serena. Um sentimento determinado é, desse modo, apoiado por uma cerimônia, pela arquitetura, por uma boa companhia e por alimentos – e assim oferece um lugar seguro à vida de todos os zen-budistas japoneses.
As religiões trazem escala, consistência e força externa àquilo que de outra forma poderia permanecer para sempre como um evento pequeno, aleatório e privado. Elas dão substância às nossas dimensões interiores – aquelas partes de nós que o Romantismo prefere deixar desregulamentadas, pelo medo de obstruir nossas chances de autenticidade. Elas não relegam nossos sentimentos unicamente a volumes de poesia ou ensaios, sabendo que, no fim, os livros são objetos silenciosos em um mundo barulhento. Na primavera, o judaísmo nos agarra com uma força que Wordsworth ou Keats jamais empregaram: na primeira floração das árvores, os fiéis são instruídos a se reunir ao ar livre com um rabino para juntos recitarem a birkat ilanot, uma oração ritual do Talmude em homenagem à mão responsável pelo florescimento:

Bendito és Tu, Senhor nosso Deus, Rei do Universo
Que não deixaste faltar uma única coisa em Teu mundo,
Criando as mais belas criaturas e árvores,
Para usufruto de toda a humanidade
(Talmude, Berachot, 33:2)

Precisamos de instituições para estimular e proteger aquelas emoções que estamos inclinados a cultivar, mas às quais, sem uma estrutura de apoio e um sistema de lembretes ativos, não dedicamos tempo porque somos distraídos e indisciplinados demais. (pg. 248)

2 comentários:

  1. Gostei mais do seu comentário sobre o livro do que dos trechos citados do próprio livro.
    Leia o e-mail mandado por sergioa "O Deus de Spinoza",talvez vc. já o conheça,achei bastante interessante a visão deste filósofo antigo e pós-moderno.

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    1. Obrigado por comentar.
      Achei na Internet o vídeo e o texto intitulado "O Deus de Spinoza". Pelo estilo, parece não ser texto realmente do filósofo.

      O texto reproduz a ideia de Spinoza de que Deus não está separado da Natureza, mas é toda a Natureza. No entanto, para Spinoza, Deus também se encontra além, no sentido de que o homem nunca consegue perceber Deus integralmente. Essa ideia da imanência de Deus no mundo ou natureza, porém transcendente à capacidade de percepção humana, é uma ideia bem comum e antiga nas tradições religiosas. Reproduzo abaixo dois textos que exemplificam isso na tradição cristã e na tradição hindu:

      3. Disse Jesus: Se vossos guias vos afirmarem: eis que o Reino está no Céu, então, as aves estarão mais perto do Céu do que vós; se vos disserem: eis que está no mar, então, os peixes já o conhecem... Pelo contrário, o Reino está dentro de vós e, também, fora de vós.

      77. Disse Jesus: Eu sou a Luz que ilumina todos os homens. Eu sou o Todo. O Todo saiu de mim e o Todo voltou a mim. Ao rachardes lenha, eu estou aí. Ao levantardes uma pedra, aí me encontrareis.

      113. Perguntaram-lhe os discípulos: Quando virá o Reino? Jesus respondeu: Não é pelo fato de alguém estar à sua espera que o verá chegar. Nem será possível dizer: Está ali, ou está aqui. O Reino do Pai está espalhado por toda a terra e os homens não veem.
      (de O Evangelho de Tomé, Traduzido e comentado por Jean-Yves Leloup, Editora Vozes)

      Acreditar que nosso Eu mais interior era idêntico a brahman, a realidade suprema, era um espantoso ato de fé no potencial sagrado da humanidade. A expressão clássica dessa doutrina encontra-se no inicial Chandogya Upanisad. O brahmim Uddalaka queria mostrar a seu filho Svetaketu, que se orgulhava de seu conhecimento dos Vedas, as limitações da antiga religião. Pediu-lhe que dissolvesse um torrão de sal num vaso d'água. Na manhã seguinte, o sal aparentemente desapareceu, mas, claro, quando Svetaketu bebeu a água, descobriu que a substância impregnava todo o líquido do vaso, embora não se pudesse vê-la. Isso era exatamente como brahman, explicou Uddakala, não se pode vê-Lo, mas ainda assim Ele estava ali.
      - Todo o universo tem sua essência primeira (brahman) como seu Eu (atman). É isso que é o Eu; é isso que és tu, Svetaketu.
      (De Buda, de Karen Armstrong, pg 53)

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